quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Na cauda, veneno!

               Era pelos anos 50.

            À beira dos caminhos: silvados, carrascais, moitas de zimbros, trovisco, estrepes, murtinhos, valados de pedra solta a delimitar toscamente os terrenos…

            Nenhuma preocupação pela conservação das espécies, porque lagartixas, osgas, lagartos, cobras por aí se multiplicavam e a passarada tinha alimento bastante para chilrear de contente.

            Lembro-me como se fora ontem.

         A caminho da pedreira, depois do almoço em casa comigo, meu pai apanhara uma cobra de invulgar tamanho. Levou-o e foi, entre os trabalhadores, uma algazarra. Se bem pensaram, melhor o fizeram. Sob o alpendre, após a largada do trabalho, às 5. Corta-se um palmo do rabo, outro palmo da cabeça, esfola-se, esquarteja-se…

          Acompanhado por um garrafanito de 5 litros ido da taberna do Torretas, o pitéu deliciou. «É como enguia frita!» – comentava-se. Eu também comi um pedaço – que criança não podia ficar a augar. Soube-me bem e, vida afora, de vez em quando, perante o espanto dos demais, ainda sou capaz de me ufanar:

           – Eu já comi cobra!

         «Corta-se um palmo do rabo»… A ideia era comum: na cauda estava o veneno. Como a dos temíveis al

acraus, «dói muito, mãezinha, dói!»….

          Como, anos mais tarde, descobri que essa história do veneno na cauda tinha outra conotação, mais sofisticada. Como a de ires passando suavemente a mão pelo pêlo, que bom, o adversário tem experiente treinador, técnica apurada… E, no final, zás! A ferroada! Qual abelha a sentir-se em perigo.

           Creio ser por isso que os gatos inevitavelmente empertigam o rabo quando a mão acariciadora se aproxima de trás:

           – Cuidado, aqui acaba gato!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 781, 01-08-2020, p. 11.

O lacrau a guardar a casa de Dalila Garrido!

4 comentários:


  1. ________________________________________
    De: M.Manuela Delille
    quinta-feira, 6 de Agosto de 2020 15:57
    Gostei de ler a história! Não são só os Chineses que comem cobras!
    Boa continuação de férias e cuidado com os lacraus ou alacraus, das várias espécies!

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  2. Coitadas das cobras...além de comidas ainda são difamadas desde os tempos míticos ...pobre Eva!

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  3. Que texto mais saboroso (mas comer cobra é que não, que bem basta avistar algumas,por aí...). É uma história da infância com registo afectivo que apetece tanto ler. Que maneira deliciosa de escrever.

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  4. Agradeço os comentários, mesmo um - quiçá malicioso... - de uma das minhas colegas «Isso de teres comido cobra explica muita coisa a teu respeito!». Perguntei-lhe o quê, mas não me respondeu. Acho que o meu jeito de «homem do Barrocal» nada tem a ver com o ter comido cobra, mas se do Barrocal não fôramos, meu pai e eu, não cederíamos a essa tentação. Como não cedemos a outras!...
    Eurico de Sepúlveda não hesitou: e contou-me da vez em que foi mordido no Alentejo por um lacrau «e nem queiras saber as dores que isso dá!...». Por seu turno, Dalila Garrido achou que «nem de propósito, professor! Quando cheguei à minha casa de Proença-a-Nova, estava fechada e bem guardada, olhe só!» E mandou-me fotografia do bicho. Vou publicá-la a seguir à imagem que eu já pusera, de alacrau com cauda a preceito.

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