quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Caixa Solidária

       Aconteceu com outros bairros do concelho de Cascais. A oportuna iniciativa de colocar uma Caixa Solidária. A intenção era ter um espaço onde, discretamente, os moradores pudessem colocar géneros alimentícios disponibilizáveis para os mais carenciados, que à Caixa também discretamente acederiam

      Trata-se de ajudar a ‘classe’ (digamos assim) que, neste momento, está a passar por dificuldades. A classe remediada, média, aquela que dependia dos seus salários para viver o dia-a-dia. Muitos dos empregos, sabe-se, sumiram como que por encanto e quem tinha despesas mensais normalmente suportadas pelo ordenado de um dos cônjuges ou dos dois vê-se agora em palpos de aranha para sobreviver.

      A dificuldade repercute-se, de modo especial, ao nível da alimentação. Se não tenho carne, como pão; se a sopa não está tão suculenta como deveria ser, acrescenta-se-lhe uma côdea…. Enfim, vamos vivendo…

      A Caixa Solidária do meu bairro foi roubada. Não porque dela se tenham retirado os víveres que, diariamente, como tutor, eu lá colocava, provenientes das doações de várias empresas de Cascais através da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal; mas não é que o estupor da Caixa era, de facto, bonita, jeitosa, bem confeccionada?!... Enfim, mesmo a calhar lá para a minha despensa: pões aqui os enlatados, ali as bebidas; ao lado, as mercearias ou os produtos de higiene ou para o canito e o gato . Tudo mesmo a condizer para uma despensa. Aliás, no próprio dia em que a Caixa foi colocada no sítio, dizia-me alguém do próprio executivo camarário: «Realmente, um modelo a usar na nossa despensa!». E era verdade!

      Por isso, depois de algum tempo de serviço público, a Caixa acabou por se escapulir para um serviço… privado! Penso eu que, neste momento, estará bem resguardada, sem ter sol nem chuva, na casa de alguém. Espero que lhe sirva, lhe faça bom proveito e lhe relembre a possibilidade de colocar ao dispor dos outros algo que tenha a mais e que possa suprir dificuldades alheias.

      A Caixa Solidária foi agora reposta, presa, para que não seja tão facilmente removida.

      Não acredito no acaso. O facto de ter ficado com alguns mantimentos, que não pude colocar à disposição de todos, fez com que tentasse procurar quem poderia estar em dificuldades. E a surpresa veio donde menos esperava. Conversa puxa conversa e as lágrimas a custo contidas e a emoção a embargar a voz foram mais do que eloquentes. Uma destas situações envergonhadas de quem toda a vida nunca teve de pedir. E, neste momento, essa é a dificuldade maior, para além de dificuldade concreta: a acrescida dificuldade psicológica!

      Fiquei a saber, portanto – e quantos mais casos não haverá! –, para onde poderia também encaminhar parte do que me era entregue. E fiquei a pensar que, na realidade, talvez possamos todos, ao final do dia, pôr a mão na consciência: «E se eu passasse pela Caixa de Solidariedade a deixar lá uma embalagem de batatas, um pacote de leite?...».

      Está bem, sabemos que pode haver aproveitadores, pode haver quem não necessite e se esteja a locupletar com aquilo que devia ser entregue ao vizinho que, de facto, necessitava. Um risco, porém, que vale a pena correr! Digo eu

                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 325, 2020-08-26, p. 24.

 


 

3 comentários:

  1. Um texto muito bonito de um Ser humano excepcional que, além de tanto saber e prestígio, ainda se preocupa com os outros. O roubar, por parte daqueles que não precisam tanto e não querem saber do semelhante, faz-me lembrar os animais, sempre a disputarem a ração alheia mesmo que já tenham comido... É por isso que, concordando com o facto de valer mais arriscar deixando géneros, do que não deixar a pensar nos "aproveitadores", eu ousaria sugerir a insistência desse trabalho de abordagem, ou sinalização, de casos no desespero do silêncio. Porque nunca precisaram, sentem constrangimento, como eu sentiria, em assumir a situação que vivem.

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  2. Um texto muito bonito de um Ser humano excepcional que, além de tanto saber e prestígio, ainda se preocupa com os outros. O roubar, por parte daqueles que não precisam tanto e não querem saber do semelhante, faz-me lembrar os animais, sempre a disputarem a ração alheia mesmo que já tenham comido... É por isso que, concordando com o facto de valer mais arriscar deixando géneros, do que não deixar a pensar nos "aproveitadores", eu ousaria sugerir a insistência desse trabalho de abordagem, ou sinalização, de casos no desespero do silêncio. Porque nunca precisaram, sentem constrangimento, como eu sentiria, em assumir a situação que vivem.

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