sábado, 1 de junho de 2019

Alijar tudo dos baús


             Será sempre assim? Terá sido sempre assim? É obrigatório que seja assim?
            Estas, as perguntas que, de olhos no infinito após os ter poisado no ecrã do computador, se me martelaram na cabeça.
            Se calhar, foi, e nós nada mais somos do que a repetição de tantos que, antes de nós, década após década, pensaram da mesma maneira, tiveram a mesma reacção. Uns soçobraram, talvez; outros encararam a realidade de peito aberto e abriram os baús para os arrumar e alijar quanto neles, de desnecessário doravante, haviam ciosamente guardado; outros, ainda, tentaram mudar de olhar e convencer-se de que quanto se lhes antojava evidente não passava de mui ilusória miragem irreal.
           Assaltaram-me, impertinentes, estes pensamentos. Já não os tinha há muito, embalado – graças a Deus! – pelos afazeres quotidianos que não faltam e serenamente me preenchem os dias. Não hesitei, porém, e recortei o penúltimo parágrafo da mensagem que a minha colega endereçara a um Amigo comum. Chegou a ser Reitor de Universidade durante largo tempo. Em breve se jubilaria. Transcrevo o recorte na língua original, para que não perca o sabor:

«Tra qualche mese anche tu sarai “dei nostri”. Non preoccuparti: i ritmi di lavoro non cambieranno, la gioventù continuerà a farti rileggere quanto ha scritto e potrai dedicare alle tue ricerche tutto il tempo che ora impieghi a riempire e-moduli dai nomi impronunciabili con i quali quest’università, così lontana da quella che avevamo voluto e in parte realizzato, pensa di mascherare la propria agonia».

Traduzo:
“Dentro de alguns meses também tu serás dos ‘nossos’. Mas não te amofines – que não mudarão os ritmos de trabalho, os jovens continuarão a dar-te a ler o que escreveram e poderás dedicar à tua investigação o tempo todo que ora empregas a preencher e-módulos de nomes impronunciáveis com que esta universidade – tão longe daquela por que suspirámos e, em parte, lográmos concretizar – imagina que consegue mascarar a sua própria agonia”.

«Velhos do Restelo!», dir-se-á. E não posso deixar de concordar. «Velhos do Restelo» somos. De vez em quando, em «velhos do Restelo» nos tornamos. Ou as circunstâncias nos transformam…
            ¿Porque será, pergunto-me agora, porque será que Luís de Camões imaginou, no solene momento da mui gloriosa partida, essepara o canto IV d’Os Lusíadas, «velho d'aspeito venerando», que três vezes a cabeça meneou e de «voz pesada» falou, «c'um saber só de experiências feito»? No mar, então, ouviram-no «claramente». Agora, será que inda há tempo para… ouvir?

                                                             José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 755, 2019-06-01, p. 11.

   Ilustração de Rolando Sá Nogueira para o canto IV d’Os Lusíadas,
   edição comemorativa do 4º centenárioda 1ª edição do poema
   (Estúdios Cor, Lisboa, 1971).

1 comentário:

  1. José Azevedo Silva
    segunda-feira, 3 de Junho de 2019 10:34
    Obrigado pela partilha de uma pertinente reflexão pessoal, servida por um belo texto.

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