terça-feira, 6 de setembro de 2022

Há séculos que o não via!

            E ali estava, encostado ao carrinho das compras, no hipermercado, na fila única, à espera que chegasse a sua vez de ser atendido numa caixa.

             Saudei-o de relance (era preciso ir rápido para o fim da fila!...), ouvi-lhe uma resposta evasiva, embrulhada em desalento («Vamos andando…»), vi que uma canadiana jazia sobre as compras.
            A necessária atenção à chamada no ecrã digital e, depois, a pressa em colocar as compras no tapete rolante (¿porque será que a gente tem sempre pressa em esvaziar o carrinho, como se não houvesse amanhã, qual sangria desatada a esvair-se em sangue?...) fizeram-me esquecer o Lampreia.
            Reencontrei-o no corredor da saída. Continuava encostado ao carrinho das compras, sentado num dos bancos.
            – A descansar, não? – perguntei-lhe.
            Eu fizera rapidamente as contas. O Lampreia andaria pelos 80 e tal. Uma vida atarefada. Técnico de contas competentíssimo, muito solicitado, partilháramos a preocupação constante de manter em nível sustentável as contas do jornal…
            – Há tempo para tudo, já lá diz a Bíblia! – ripostou-me, numa solenidade.
            Sorri, concordei com ele e segui meu caminho. O Lampreia merecia que eu tivesse parado. Eu devia ter parado a dar-lhe dois dedos de conversa, só dois que fossem! Não dei. Estou arrependido. Não só pela Amizade que lhe tenho, mas também porque também a mim me fazia bem parar por instantes, após o frenesim da mercancia. Não parei. Continuando o meu caminho – na vontade de agarrar o quê? – esperdicei a oportunidade! Tenho de lhe pedir desculpa.
            Veio-me à memória, já a caminho de casa, repeso do mal feito, uma daquelas cenas que, de vez em quando, nos aparecem no computador. Noticiava-se, em Abril de 2007:
«O famoso violinista norte-americano Joshua Bell mostrou que, apesar de tocar de forma magistral as mais belas composições clássicas, os utentes do metropolitano da capital norte-americana, Washington, são insensíveis ao seu virtuosismo».
Não terá sido insensibilidade só: pressa, direi eu! Bell, vestido de jeans, camisa de manga comprida e boné, tocou o seu stradivarius de 1713, avaliado em 3,5 milhões de dólares, para 1097 pessoas que lhe passaram ao pé. Alguns deram esmola. Arrecadou, pelos 43 minutos de actuação, 32,17 dólares. Três dias antes,  no Boston Symphony Hall, onde actuara, com lotação esgotada, cada bilhete custara 100 dólares!...       
                                                        José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 828, 01-09-2022, p. 12.

4 comentários:

  1. Viva Prof. Não sei se o que relata é verdade ou ficção, mas pego no que li para exprimir o que constato e me apoquente. O porquê de os velhos terem (ou mostrarem) tanta pressa.
    (era preciso ir rápido para o fim da fila!...)porquê?
    (¿porque será que a gente tem sempre pressa em esvaziar o carrinho, como se não houvesse amanhã,
    – Há tempo para tudo, já lá diz a Bíblia! – ripostou-me, numa solenidade...

    "Sorri, concordei com ele e segui meu caminho. O Lampreia merecia que eu tivesse parado. Eu devia ter parado a dar-lhe dois dedos de conversa, só dois que fossem! Não dei. Estou arrependido. Não só pela Amizade que lhe tenho, mas também porque também a mim me fazia bem parar por instantes, após o frenesim da mercancia."
    Gosto de o ler.
    Maria Helena




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  2. Esta outra Helena também gostou muito de ler mais este texto do Prof. José d´Encarnação. Não só porque ele tem a coragem de fazer aqui um acto de contrição pela sua pressa, mas também porque o texto desperta a nossa culpa na pressa inútil das viagens diárias. Esta é uma falta comum devida a "urgências" pouco urgentes, porque uns dedinhos de conversa funcionam como terapia para muita gente idosa e solitária. Mas há outras faltas mais graves...Mea culpa...

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  3. A pressa está-nos no sangue, como uma marca genética que não sabemos explicar. Tudo tem que ser rápido! Estamos embrenhados em mil e uma tarefas e, parece, que disso depende a nossa sobrevivência! No final para quê? Para nos desgastarmos mais depressa e chegarmos a um dia, em que finalmente paramos e percebemos que, no meio de tanta pressa, não vivemos metade do que deveríamos e que, a maior parte das vezes, desperdiçámos o essencial, que é o tempo para nos darmos a nós próprios e aos outros.

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