E
ali estava, encostado ao carrinho das compras, no hipermercado, na fila única,
à espera que chegasse a sua vez de ser atendido numa caixa.
Saudei-o de relance (era preciso ir rápido
para o fim da fila!...), ouvi-lhe uma resposta evasiva, embrulhada em desalento
(«Vamos andando…»), vi que uma canadiana jazia sobre as compras.
A
necessária atenção à chamada no ecrã digital e, depois, a pressa em colocar as compras
no tapete rolante (¿porque
será que a gente tem sempre pressa em esvaziar o carrinho, como se não houvesse
amanhã, qual sangria desatada a esvair-se em sangue?...) fizeram-me esquecer o
Lampreia.
Reencontrei-o
no corredor da saída. Continuava encostado ao carrinho das compras, sentado num
dos bancos.
– A descansar,
não? – perguntei-lhe.
Eu fizera
rapidamente as contas. O Lampreia andaria pelos 80 e tal. Uma vida atarefada.
Técnico de contas competentíssimo, muito solicitado, partilháramos a
preocupação constante de manter em nível sustentável as contas do jornal…
– Há tempo
para tudo, já lá diz a Bíblia! – ripostou-me, numa solenidade.
Sorri,
concordei com ele e segui meu caminho. O Lampreia merecia que eu tivesse
parado. Eu devia ter parado a dar-lhe dois dedos de conversa, só dois que
fossem! Não dei. Estou arrependido. Não só pela Amizade que lhe tenho, mas
também porque também a mim me fazia bem parar por instantes, após o frenesim da
mercancia. Não parei. Continuando o meu caminho – na vontade de agarrar o quê?
– esperdicei a oportunidade! Tenho de lhe pedir desculpa.
Veio-me à memória,
já a caminho de casa, repeso do mal feito, uma daquelas cenas que, de vez em
quando, nos aparecem no computador. Noticiava-se, em Abril de 2007:
«O
famoso violinista norte-americano Joshua Bell mostrou que, apesar de tocar de
forma magistral as mais belas composições clássicas, os utentes do metropolitano
da capital norte-americana, Washington, são insensíveis ao seu virtuosismo».
Não terá sido
insensibilidade só: pressa, direi eu! Bell, vestido de jeans, camisa de manga
comprida e boné, tocou o seu stradivarius de 1713, avaliado em 3,5
milhões de dólares, para 1097 pessoas que lhe passaram ao pé. Alguns deram
esmola. Arrecadou, pelos 43 minutos de actuação, 32,17 dólares. Três dias
antes, no Boston Symphony Hall, onde actuara,
com lotação esgotada, cada bilhete custara 100 dólares!...
José
d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 828, 01-09-2022, p. 12.
https://youtu.be/hnOPu0_YWhw
ResponderEliminarViva Prof. Não sei se o que relata é verdade ou ficção, mas pego no que li para exprimir o que constato e me apoquente. O porquê de os velhos terem (ou mostrarem) tanta pressa.
ResponderEliminar(era preciso ir rápido para o fim da fila!...)porquê?
(¿porque será que a gente tem sempre pressa em esvaziar o carrinho, como se não houvesse amanhã,
– Há tempo para tudo, já lá diz a Bíblia! – ripostou-me, numa solenidade...
"Sorri, concordei com ele e segui meu caminho. O Lampreia merecia que eu tivesse parado. Eu devia ter parado a dar-lhe dois dedos de conversa, só dois que fossem! Não dei. Estou arrependido. Não só pela Amizade que lhe tenho, mas também porque também a mim me fazia bem parar por instantes, após o frenesim da mercancia."
Gosto de o ler.
Maria Helena
Esta outra Helena também gostou muito de ler mais este texto do Prof. José d´Encarnação. Não só porque ele tem a coragem de fazer aqui um acto de contrição pela sua pressa, mas também porque o texto desperta a nossa culpa na pressa inútil das viagens diárias. Esta é uma falta comum devida a "urgências" pouco urgentes, porque uns dedinhos de conversa funcionam como terapia para muita gente idosa e solitária. Mas há outras faltas mais graves...Mea culpa...
ResponderEliminarA pressa está-nos no sangue, como uma marca genética que não sabemos explicar. Tudo tem que ser rápido! Estamos embrenhados em mil e uma tarefas e, parece, que disso depende a nossa sobrevivência! No final para quê? Para nos desgastarmos mais depressa e chegarmos a um dia, em que finalmente paramos e percebemos que, no meio de tanta pressa, não vivemos metade do que deveríamos e que, a maior parte das vezes, desperdiçámos o essencial, que é o tempo para nos darmos a nós próprios e aos outros.
ResponderEliminar