Não fiz a
licenciatura em Coimbra; apenas leccionei na Faculdade de Letras de 1976 a 2007;
não detenho, pois, o cartão de Antigo Estudante, mas sim o de Professor
Aposentado.
Trabalhando em Coimbra e vivendo
em Cascais, tive, por outro lado, o privilégio de sentir Coimbra no presente e
no passado. O presente era o contacto constante com os estudantes e as suas
tradições; o passado era a vívida lembrança que me era transmitida, por
exemplo, nas sessões comemorativas da Tomada da Bastilha, organizadas
anualmente no Casino Estoril pela Associação dos Estudantes de Coimbra em
Lisboa.
Uma Coimbra a duas dimensões: a
real, que eu vivia, com as vicissitudes e conquistas do dia-a-dia; e a
imaginária, ou seja, aquela que ficara, envolta em profunda saudade, em quantos
por lá passaram as melhores jornadas da sua juventude.
Duas figuras consubstanciavam, de
modo especial, esse enlevo: Luiz Goes e Carlos Carranca. Com ambos mantive um
relacionamento de grande amizade. O Luiz vinha almoçar, de vez em quando, ao
restaurante do meu bairro e, quando eu entrava, por mais que eu insistisse que
não, levantava-se da mesa e vinha dar-me um abraço. Com o Carlos cedo se
cimentou uma cumplicidade enorme, sobretudo no acompanhamento estreito das
iniciativas em que o seu espírito era impenitente empreendedor. Tive
oportunidade de apresentar alguns dos seus livros, arguí a sua tese de
doutoramento sobre o Iberismo em Torga e Unamuno, acompanhei de perto as suas
aulas na Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde era docente de
Património.
Casavam-se às mil maravilhas os
vozeirões de ambos e não havia sessão de apresentação de livro, de inauguração
de exposição relativa a Coimbra que não tivesse, no final, um apontamento
musical em jeito de serenata saudosa, em que intervinham, além dos dois, o
pessoal do grupo "Porta Férrea", cuja figura principal era o Carlos
Couceiro, «a quem Coimbra muito deve pela forma como levou o seu fado para
Lisboa, e não só», sublinhou Rosa Sousa (viúva de Carranca), juntamente com
António Toscano, Teotónio Xavier, Durval Moreirinhas. E adregava aparecerem os
Pardalitos do Mondego, grupo que Carlos apadrinhou: o José Reis, o Francisco
Viana, o José Queirós, o Rui Lucas… Dessa vontade de irmanar a Grande Lisboa
com a Lusa Atenas surgiu também "A Taberna de Coimbra", iniciativa de
Nuno Cadete, que Carlos Carranca incondicionalmente apoiou.. Um universo onde
se incluiu "Raízes de Coimbra", com o Octávio Sérgio, o Rui Pato, os
irmãos Arosos...
Facilmente se encontrarão na
internet descrições calorosas do que foram duas das grandes iniciativas a que
Carlos Carranca, poeta, meteu ombros, ambas por ocasião de comemorações da
Tomada da Bastilha: em Novembro de 2007, a «Aqui, diante de mim», homenagem a
Miguel Torga (um dos autores sobre cuja obra mais se debruçou), e aquela que, a
23 de Novembro de 2013, foi prestada a Luiz Goes. De salientar também a sua
estreita colaboração com o Teatro Experimental de Cascais, na criação da peça Torga,
em Maio de 2015.
Não resisto a transcrever parte
da descrição do espectáculo de 2007, porque, tendo assistido, me sinto
totalmente irmanado com o que Manuela
Alves da Costa, Presidente
da Delegação de Lisboa dos Antigos Estudantes, escreveu:
«Silêncio… muito silêncio!
Cenário sóbrio! Carlos Carranca entra em cena, em mangas de camisa e descalço.
Senta-se à mesa, […] acende a vela e começa, com a sua famosa voz, a narrar os
acontecimentos mais marcantes da vida do Escritor, dizendo, no seu estilo
incomparável, os versos do próprio Miguel Torga. Ao fundo, começam a
movimentar-se os alunos da Escola Profissional de Teatro. Todos descalços,
modestamente vestidos, com movimentos sentidos e lentos, muito bem ensaiados.
Duas moças cantam maravilhosamente e a narrativa segue, na voz de Carlos
Carranca. Sobe então ao palco o nosso querido Amigo Luís Goes, que, acompanhado
por Carlos Couceiro e António Toscano, canta, como só ele sabe, o poema “Aqui”.
Foi a melhor e mais linda homenagem que vi prestar a Miguel Torga».
José
d’Encarnação
Publicado em inFoRmAção
[Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra] 12, Setembro 2022, p. 14-15.
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O doutorado e o júri. Universidade Autónoma de Lisboa. 1-6-2010 |
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Os estudantes da EPTC com C. Carranca. Casino Estoril. Homenagem a Luiz Goes. 23-11-2013 |
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Apresentação, no Teatro Experimental de Cascais, do livro «Para além do Mar Vermelho» (16-11-2017) |
De: Helena Ventura Pereira
ResponderEliminar13 de setembro de 2022
Um maravilhoso texto que me trouxe Coimbra em vários tons e a presença tão expressiva de Carlos Carranca.
Sempre custa ver partir as pessoas com mais alegria de viver, mas este texto consegue trazê-lo bem vivo à nossa lembrança.
Uma bela evocação.