terça-feira, 13 de setembro de 2022

Entre Coimbra e Cascais com Luiz Goes e Carlos Carranca

            Não fiz a licenciatura em Coimbra; apenas leccionei na Faculdade de Letras de 1976 a 2007; não detenho, pois, o cartão de Antigo Estudante, mas sim o de Professor Aposentado.

Trabalhando em Coimbra e vivendo em Cascais, tive, por outro lado, o privilégio de sentir Coimbra no presente e no passado. O presente era o contacto constante com os estudantes e as suas tradições; o passado era a vívida lembrança que me era transmitida, por exemplo, nas sessões comemorativas da Tomada da Bastilha, organizadas anualmente no Casino Estoril pela Associação dos Estudantes de Coimbra em Lisboa.
Uma Coimbra a duas dimensões: a real, que eu vivia, com as vicissitudes e conquistas do dia-a-dia; e a imaginária, ou seja, aquela que ficara, envolta em profunda saudade, em quantos por lá passaram as melhores jornadas da sua juventude.
Duas figuras consubstanciavam, de modo especial, esse enlevo: Luiz Goes e Carlos Carranca. Com ambos mantive um relacionamento de grande amizade. O Luiz vinha almoçar, de vez em quando, ao restaurante do meu bairro e, quando eu entrava, por mais que eu insistisse que não, levantava-se da mesa e vinha dar-me um abraço. Com o Carlos cedo se cimentou uma cumplicidade enorme, sobretudo no acompanhamento estreito das iniciativas em que o seu espírito era impenitente empreendedor. Tive oportunidade de apresentar alguns dos seus livros, arguí a sua tese de doutoramento sobre o Iberismo em Torga e Unamuno, acompanhei de perto as suas aulas na Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde era docente de Património.
Casavam-se às mil maravilhas os vozeirões de ambos e não havia sessão de apresentação de livro, de inauguração de exposição relativa a Coimbra que não tivesse, no final, um apontamento musical em jeito de serenata saudosa, em que intervinham, além dos dois, o pessoal do grupo "Porta Férrea", cuja figura principal era o Carlos Couceiro, «a quem Coimbra muito deve pela forma como levou o seu fado para Lisboa, e não só», sublinhou Rosa Sousa (viúva de Carranca), juntamente com António Toscano, Teotónio Xavier, Durval Moreirinhas. E adregava aparecerem os Pardalitos do Mondego, grupo que Carlos apadrinhou: o José Reis, o Francisco Viana, o José Queirós, o Rui Lucas… Dessa vontade de irmanar a Grande Lisboa com a Lusa Atenas surgiu também "A Taberna de Coimbra", iniciativa de Nuno Cadete, que Carlos Carranca incondicionalmente apoiou.. Um universo onde se incluiu "Raízes de Coimbra", com o Octávio Sérgio, o Rui Pato, os irmãos Arosos...
Facilmente se encontrarão na internet descrições calorosas do que foram duas das grandes iniciativas a que Carlos Carranca, poeta, meteu ombros, ambas por ocasião de comemorações da Tomada da Bastilha: em Novembro de 2007, a «Aqui, diante de mim», homenagem a Miguel Torga (um dos autores sobre cuja obra mais se debruçou), e aquela que, a 23 de Novembro de 2013, foi prestada a Luiz Goes. De salientar também a sua estreita colaboração com o Teatro Experimental de Cascais, na criação da peça Torga, em Maio de 2015.
Não resisto a transcrever parte da descrição do espectáculo de 2007, porque, tendo assistido, me sinto totalmente irmanado com o que Manuela Alves da Costa, Presidente da Delegação de Lisboa dos Antigos Estudantes, escreveu:

«Silêncio… muito silêncio! Cenário sóbrio! Carlos Carranca entra em cena, em mangas de camisa e descalço. Senta-se à mesa, […] acende a vela e começa, com a sua famosa voz, a narrar os acontecimentos mais marcantes da vida do Escritor, dizendo, no seu estilo incomparável, os versos do próprio Miguel Torga. Ao fundo, começam a movimentar-se os alunos da Escola Profissional de Teatro. Todos descalços, modestamente vestidos, com movimentos sentidos e lentos, muito bem ensaiados. Duas moças cantam maravilhosamente e a narrativa segue, na voz de Carlos Carranca. Sobe então ao palco o nosso querido Amigo Luís Goes, que, acompanhado por Carlos Couceiro e António Toscano, canta, como só ele sabe, o poema “Aqui”. Foi a melhor e mais linda homenagem que vi prestar a Miguel Torga».

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em inFoRmAção [Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra] 12, Setembro 2022, p. 14-15.

O doutorado e o júri. Universidade Autónoma de Lisboa. 1-6-2010
Os estudantes da EPTC com C. Carranca. Casino Estoril. Homenagem a Luiz Goes. 23-11-2013
Apresentação, no Teatro Experimental de Cascais, do livro «Para além do Mar Vermelho» (16-11-2017)

1 comentário:

  1. De: Helena Ventura Pereira
    13 de setembro de 2022
    Um maravilhoso texto que me trouxe Coimbra em vários tons e a presença tão expressiva de Carlos Carranca.
    Sempre custa ver partir as pessoas com mais alegria de viver, mas este texto consegue trazê-lo bem vivo à nossa lembrança.
    Uma bela evocação.

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