Versejava.
Ou melhor: para ele tudo era motivo de mais uma quadra, quer a pedido, quer
porque estava prá virado.
Este
livrinho, ora em 2ª edição, vem na altura certa e bem fez a União das
Freguesias de Cascais e Estoril em o reeditar.
Assim
se mostra quanto de saboroso, típico e substancial a alcunha encerra, por desta
forma se caracterizar espontaneamente toda uma personalidade, nos seus tiques,
na sua maneira de ser, na actividade que exerce. Diria ser uma espécie de
talismã, que cada um carrega consigo e não se importa nada, porque sabe que, no
fim das contas, ali não há maldade mas uma ingénua forma de carinho.
Sentiu-se
a necessidade, aqui há tempos, de editar um livro com as alcunhas do Alentejo.
É o Tratado das Alcunhas Alentejanas
(Edições Colibri, 4ª edição, 2013), de Francisco Martins Ramos (da Amareleja) e
Carlos Alberto da Silva. É o primeiro professor catedrático de Antropologia;
doutor em Sociologia, o segundo! Isto para mostrar o extraordinário alcance que
a alcunha tem no seio de uma sociedade.
E,
neste livrinho, a sociedade é a vila de Cascais e as suas gentes, nos meados do
século passado. As gentes com quem Henrique Rodrigues de Brito, «o senhor
Henrique da sapataria» se cruzava todos os dias. Diz ele, no final do
larguíssimo rol de alcunhas, que porventura mais haveria, «não me lembro, podem
crer. Por me doerem as unhas, vou terminar de escrever».
Terminou
essa primeira parte, porque vem depois um ressuscitar do Largo Camões, o
coração da vila; um relancear de olhos sobre os nobres que escolheram Cascais
para viver – e o povo tinha por eles admiração e eles este Povo bem entendiam;
passeamo-nos de seguida pela Rua Visconde da Luz e pela Rua da Palmeira, que
lhe era tão querida, pois aí nascera. De caminho, não poderiam esquecer-se os
sons quotidianos, Cascais e os seus pregões («Ó viva da costa! Venha cá ver,
freguesa!» – parece-me que as estou a ouvir, as azougadas varinas, com seus
aventais coloridos).
Para
quem, hoje, vê a vila custa-lhe a crer, de certeza, na quantidade de ofícios
que por ali pululavam! De tudo havia! O funileiro, o latoeiro, o amolador, o
ferrador, o capador… quem diria?!
Revivemos,
porém, os que tivemos a dita de já ser vivos então: a tabacaria do Messias, onde
se compravam cadernos, lápis, os livros prá escola… Ai, as nozes e os bolos do
Paulino!… Ainda hoje para os mais antigos escapa, de vez em quando, a
referência à «padaria do Paulino» e, se calhar, até quem lá trabalha ainda não
reparou bem na grande chaminé que o forno tinha… A Marelina, onde havia tudo
quanto era botão e onde todas as modistas se aviavam. A relojoaria do Gomes; o
Ferrer engraxador; o Barateiro, para os bibes; a sapataria do Carneiro; a
Tabacaria Cabral; o Béu da drogaria na rua da polícia; o Retratista, que viria
a morrer na Boca do Inferno, a tentar salvar uma turista; o Edmundo Ferreira, actor
no grupo cénico dos Bombeiros; o chefe Zé Frito, uma glória dos bombeiros; «no
outro lado do rio» (achei piada a esta frase!), a estância do Estêvão
d’Oliveira…
Henrique
Brito tudo envolve nas suas rimas e não esquece histórias. O velhote Caga Lume,
relojoeiro, quando ia para montar os relógios «sempre lhe sobravam peças»! O
«Salsa», Mestre Oliveira, exímio afinador de pianos; o «Joaquim da Cooperativa
que rifava um galo por semana»!
No
domínio dos «comes»: o João Padeiro (ai, aquele linguado frito que não tinha
igual!...); o Pereira, que persiste na ‘ementa’ dos nossos dias; o Mestre Zé,
que viria a ter restaurante no Guincho; o Torretas, com taberna em Birre; o
Manuel Diabo, com casa de pasto entre o cemitério e a Boca do Inferno e o que a
gente brincava com isso!...
Vários
dos personagens acabaram por se alargar pelos lugares vizinhos de Torre e de
Birre: os Gafanhotos, os Paulistas, os Campanudos… Alfredo Pinheiro, o Perna de
Pau, teve estabelecimento na Torre, muitas vezes me cortou o cabelo, e era ali
mercearia, taberna, tudo… Foi presidente da Junta de Freguesia, doou à
Misericórdia a creche que viria a ter o seu nome, na estrada para Birre. E já
que se fala nessa estrada, à beira da qual eu passei a minha meninice, direi que uma das personagens que mais admiração me causava, pelo mistério que dele evolava
(penso eu), era o Màriguta, que apregoava «Fèrrevelho!» e eu corria a perguntar
«Ó mãe, não tens aí nada pró Màriguta?»… E, de vez em quando, vinha também o azeiteiro,
que nos abastecia de azeite, petróleo, sabão… A carroça dele era um espanto de
brilhos e de vasilhas!...
Antes
de se lançar na evocação do Largo
Camões, Henrique Brito afirma não
ter «veia poética». No final do livro, apela ao respeito pelos velhos, que são,
afinal, como ele, repositório de tantas memórias. De memórias se vive aqui. E
se revivem. E poesia, Amigo, é isso mesmo: criar rimas, sim, mas sobretudo
fazer as memórias falar. Em tom de chalaça aqui, mais sério acolá; sempre,
porém, numa profunda atenção às
Pessoas! Essa, a sua grande Lição!
Estamos-lhe também gratos por isso!
José d’Encarnação
Associação Cultural de Cascais
Prefácio ao livro, de Henrique
Rodrigues de Brito, Nomes e Alcunhas de
Cascais, União das Freguesias de Cascais e Estoril, Cascais, 2ª edição,
2019, p. 3-5.
Excelente homenagem escrita ao nosso conterrâneo cascaense de cujo filho sou amigo de longa data.
ResponderEliminarMuito obrigado e grato pela iniciativa.
Forte Abraço,
Fernando Machado
Teve Carlos Rodrigues a gentileza de me informar do seguinte, na página do Facebook:
ResponderEliminar«Olá, professor! Quem escreve estas palavras é o Carlos Rodrigues, mais conhecido por Fanhanhaca (alcunha do meu pai),um dos personagens referidos no livro do senhor Henrique Rodrigues de Brito. E escrevo para lhe dizer que realmente para muita gente ele era conhecido como o senhor Henrique da sapataria, mas para quem o conhecia melhor (os da geração dele), grande parte deles já falecidos, o senhor Henrique (grande amigo do meu pai) era conhecido por Meio-Tostão, talvez pela altura (era pequeno).»
Fico grato pela informação, meu caro Carlos, porque o autor não refere, de facto, a alcunha por que ele próprio era conhecido!
E foi para mim - e para o Executivo da Junta, claro! - ter havido esta extraordinária recepção a um livro que muito contribui para cimentar o necessário espírito de vizinhança!
Gostei muito do prefácio ao Nomes e Alcunhas de Cascais, e tanto ou mais da apresentação, pela tua naturalidade e por se respirar, ali, um clima familiar. Um grande abraço
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