sábado, 21 de maio de 2022

Chiça, penico!...

 Abri a janela para saudar a manhã e agradecer a Deus mais um dia que me seria dado viver. Entrou um ventinho cortante e o chorrilho de impropérios saiu-me de supetão:
– Tá um frio desgraçado! Chiça, penico, chapéu de coco, abrenúncio!
Na casa-de-banho interiorizei o que instintivamente acabara de dizer: com que jêtes, môce?
            Afinal, eu digo isso muitas vezes, em circunstâncias análogas e só agora consciencializei ser também essa uma herança de meus antepassados. A meu pai ouvira eu esse desabafo, sem que bem me desse conta das palavras ali usadas.
            «Chiça» fui ver ao Dicionário da Academia: «Exclamação que exprime dor ou protesto» e que talvez derive da palavra alemã ««Scheisse», que significa ‘porcaria’. Está bem. E nem é calão, só palavra do léxico popular. Consolei-me.
            Agora, essa junção com o penico e o chapéu de coco é que não quadra bem, na aparência. Se chiça é ‘porcaria’, o penico não vai mal ali; o chapéu de coco, porém, leva-nos para altas cavalarias, senhores vestidos de fraque… Não dá a bota com a perdigota. A não ser que – popular malvadez!... – se queira de imediato atirar para a burguesia as culpas de todos os males, esse incluído! Vem depois o abrenúncio, e esse é mais lógico: frio assim desgraçado só obra do mafarrico!...
            E será que o senhor google, se eu puser a frase toda, me dá alguma dica? Pus. E deu resultado: não sou o único a perorar sobre esse tema!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 306, 20-05-2022, p. 13.

 

3 comentários:


  1. De: Cesar Correia 21 de maio de 2022 1
    Fez-me lembrar o vendedor que apregoava "amendoins", para os ricos... e "alcagoitas", para os pobres! Assim a modos de penico, de bacio e de vaso, respectivamente para a classe baixa, remediada e abastada. E, por que não, de "chapéu de coco" para milionários?!!...

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  2. Bom, não há dúvida que os dois textos que hoje vejo no Notas & Comentários, me abrem rasgados sorrisos. Tão agradáveis de ler! Chiça penico já tinha ouvido a alguém menos jovem, contando de alguém ainda mais antigo. Na altura achei muita graça. Mas é bem mais simbólico o "chiça penico abrenúncio chapéu de coco". Para mim (quem sou eu, mas entendo assim) o sentido é que é tudo isso se iguala, nivelado por baixo, ou com classificação negativa. A porcaria é coisa má e o chapéu de coco é só um disfarce para muita (não toda) porcaria. De qualquer modo, e isso é que importa, adorei ler mais este pedacinho de prosa. E em breve conto usar esta pérola: "com que jêtes, môce"? Afinal até dá para ambos os géneros. Adoro estes textos. Logo pela manhã sabem a cerejas frescas.

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  3. A própria bota não dar com a perdigota terá que se lhe diga. Não é fácil relacionar uma com a outra, a não ser que valha a explicação que ouvi de um vetusto senhor que explicava a outro tratar-se de uma corruptela (por parte de algum ouvido apressado) da quota e da pericota (ou pericoto), termos usados em arquitectura e que, esses sim, têm a obrigação de se darem bem. Quanto à exclamação, em si, também a ouvia, lá para o norte, e ainda com o acréscimo de «Santa Rita»... Uma coisa é certa: ao darmos uma martelada num dedo, nada como esta espécie de ladainha para obstar a expressões mais cruas.

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