Encontra-se no Museu Regional de Beja – com o nº de inventário MRB.03005 – uma bem curiosa estela funerária romana, a merecer atenção pela carinhosa mensagem que dela se desprende.
A estela
«Estela» é a
designação ‘técnica’ dada a um monumento pétreo destinado a ser colocado ao
alto. Enquanto a placa pressupõe a fixação numa parede, a estela enterra-se no
chão, pelo que, habitualmente, se se tiver pensado em gravar nela uma inscrição,
a parte inferior fica em branco ou porque se enterra ou porque haverá um soco
munido de ranhura para a suster. No caso de que nos vamos ocupar há mesmo uma
ranhura horizontal a delimitar espaço que se devia manter escondido.
As dimensões
totais são as seguintes: altura, 77 cm; largura, 40; e espessura, 18. É, aliás,
a escassa espessura uma das características das estelas.
De imediato salta
à vista a graciosidade do conjunto. Esculpida em ‘mármore’ de Trigaches, tem um
frontão triangular decorado; a inscrição foi inserida num quadrado de 24 x 26
cm, cuidadosamente moldurado, e, sob ele, uma de cada lado, gravaram-se duas
rosetas hexapétalas, já um tudo-nada feridas pela erosão. Aliás, esse motivo
decorativo repete-se também sob o frontão (aí, rosetas quadripétalas), como que
a enquadrar tudo. Um toque de beleza.
Será,
porventura, o motivo central do frontão que – além da inscrição, obviamente –
mais despertará a atenção, pela sua singularidade, não apenas no quadro dos monumentos
epigráficos conhecidos de Pax Iulia, mas também no âmbito da Lusitânia
romana. Escrevemos, em 1984, que estávamos perante uma tipologia «estranha à região»
e já se explicará porquê.
É que de um
eixo central partem, como braços, em relevo, elementos a terminar em voluta, que
lembrarão certamente – para os mais dados a observações botânicas – as folhas
dos fetos a romper, uma evolução que não deixa de nos encantar, por quase
sentirmos como é que, paulatinamente, a folha se vai desenrolando e se estende.
Esse motivo foi também, durante muito tempo, típico do báculo dos bispos, qual
cajado de pastor. Eram os antigos mais dados que nós a essa observação da
Natureza e a dela fazerem transpor, para a vida humana, como que em símbolo, os
sentimentos que inspiravam. Aqui, no feto-planta, o lento mas seguro
espreguiçar-se para o alto, em busca da luz… Árvore da vida se lhe poderá chamar.
Uma árvore de perene folhagem e sempre em renovação – como todos desejaríamos que
fossem as nossas existências…
Não abunda a decoração
de índole vegetalista nos monumentos epigrafados da cidade de Pax Iulia.
Motivo idêntico a este só se encontrou num dos topos da cupa (monumento em
forma de pipa estilizada) procedente da Herdade de Santa Luzia (freguesia de S.
Brissos): o epitáfio de Júlio Primião, falecido aos 65 anos. Há um capitel no
Museu de Faro com báculos gravados desta mesma forma; na lucerna 557 de
Cartago, apresentada por Jean Deneauve no seu catálogo (prancha LVIII), o palmito
assume iguais características formais.
A inscrição
Altura é, pois,
de sabermos o que significa, em português, a inscrição latina grafada na estela:´~
Aqui jaz
Híspalo, servo de Boco, de três anos.
Que a terra
te seja leve.
Euhodo fez.
Sim,
estremecemos ao ler e – caso não soubéssemos das crueldades ainda existentes
nesta 2ª década do século XXI em muitas partes do mundo dito civilizado… –
ousaríamos perguntar: «Como foi possível escravizar um menino de três anos?».
Sim,
estremeceríamos com a nossa mentalidade actual; necessitamos, porém, de recuar
dois milénios e fazer perguntas. Primeiro, ¿quem foi Euhodo? Depois, ¿porque é que
foi ele quem fez (não mandou fazer!...) o monumento funerário para o menino?
Finalmente, ¿por que razão se escreve – com todas as letras, dir-se-ia – que o
menino foi escravo?
Ocorre voltar
à descrição que fizemos e interrogarmo-nos, perante a riqueza da decoração apresentada:
¿como é possível um escravo ter monumento assim, tão bonito? E Euhodo, ao
escrever «fez», manifesta não apenas orgulho na beleza que conseguiu mas, sobretudo,
alegria por ter logrado mostrar desta sorte toda a sua enorme ternura pelo bebé
que partiu.
Interrogamo-nos.
A
dúvida, no entanto, esclarecer-se-á se, nessa interrogação, incluirmos o terceiro
personagem mencionado na epígrafe: Boco, o dono de Híspalo! Boco
era o senhor, decerto alguém importante do ponto de vista social e económico.
Por conseguinte, ter sido seu escravo ou estar destinado a ser seu escravo não constituiria
desdoiro mas uma honra. Euhodo – que pensamos poder ter sido o pai de Híspalo –
não hesitou: também ele pertenceria à família de Boco, o senhor mui provavelmente
até contribuiu para a erecção de tão sugestivo sepulcro – e, mau grado a dor
sentida, a preciosa homenagem estava feita! Para sempre! De tal modo que, hoje,
mais de dois mil anos passados, ainda nos enternece!
Nada
mais sabemos. Nem sequer temos registo de quando nem onde a pedra foi encontrada.
Deparámo-nos com ela no Museu, nos primórdios da década de 80, ainda nem número
de inventário tinha! Na cidade ou nos arredores se terá achado. Alicia-nos pensar
que falará de gente vinda do Norte de África, origem que uma investigadora já sugeriu
para o nome Boco. Alicia-nos pensar que Euhodo possa ter sido o oleiro da oficina
de Gneu Ateio, de que se encontrou uma marca na vizinha villa romana das
Represas … Mas… nada mais sabemos!
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2092, 27-05-2022, p. 13.
Que saudade das aulas do amigo Prof. Dr. José d' Encarnação!!!!
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