Por mais que se
esmere, jamais alguém pode descrever o sol-pôr. Um dos casos em que, queira-se
ou não, o feitiço dos cambiantes inebria os mais empedernidos, mesmo quando há
nuvens densas de permeio e ténue raio espreita acolá como que a dizer adeus.
Neste Verão
passado, ao sol-pôr, os pardais do bairro decidiram passar a noite no frondoso pinheiro
manso do Luís. E era vê-los aos grupos, num chilreio, a luz da tarde fenecia,
saudarem-se mutuamente, a procurar aconchego. Noutra semana, optaram pelo alto
cipreste do Nuno – e foi a mesma algazarra, antes dos pios mais enternecidos de
quem hesita até ao último momento em pôr a cabecinha sob a asa.
Há dias, a minha
neta Maria convocou as amigas a terminarem a sua festa de aniversário sobre uma
das arribas da Praia das Maçãs a contemplarem o sol a pôr-se. Mal ela sabe
(ainda lhe não expliquei) que, justamente por ali, no Alto da Vigia, se encontraram
inscrições dedicadas o Sol e à Lua, como divindades, tal o fascínio que o sítio
despertou nos Romanos, há dois mil anos. Aliás, é nossa convicção de que os
governadores da Lusitânia não gostavam de terminar seu mandato sem irem até
ali, como que em peregrinação. Tem um génio próprio o local.
A 17 de Março
de 1995, regressavam do Museu Nacional de Arqueologia os participantes num congresso
internacional de Epigrafia, sobre religiões antigas, que se estava a realizar
em Sintra. Era ao fim da tarde e, sub-repticiamente, combinei com os motoristas
dos autocarros que parassem ali antes do Cabo Raso. O pessoal desceu e interrogava-se
da razão da estranha paragem, se, ao que parece, inscrição romana não deveria
haver por ali. Respondi que eu próprio não sabia do porquê. Até que, pouco a pouco,
a sedução cumpriu-se. E foram às dezenas os disparos das máquinas fotográficas,
enquanto o silêncio imperava. «José, sei un stregone!», cumprimentou-me um
amigo, de olhos húmidos de emoção. Respondi-lhe: «Não, Giancarlo! O Feiticeiro não
sou eu!».
Eugenia
Serafini enviou-me, há dias, a pintura anexa, o que se chama (soube-o agora) um
haiku ilustrado. E reza o poema:
«Os derradeiros
voos salpicam de dourados desejos o sol-pôr».
Esse, o nosso anseio,
quando o Sol, lento, desaparece na linha do horizonte: a certeza de que, no dia
seguinte, do outro lado ele vai nascer!...
José
d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 823, 01-06-2022, p. 12.
Simplesmente lindo... a tua alusão marca cada pequenino pedaço do nosso imaginário.
ResponderEliminarNão sei se já estive no Alto da Vigia. Por essas arribas já andei, mas muito antes do sol-pôr. Também eu tentei pintar essa magia com palavras, depois de algumas fins de tarde na praia, já lá vai muito tempo. Mas confesso que este texto me impele a fazê-lo com urgência. Esses momentos dos derradeiros vôos dourados, como descreve o haikai, são para sentir em silêncio. E agora, pelo efeito desta leitura, apetece-me dizer: José d´Encarnação: "sei un stregone"!.
ResponderEliminarMadhelena
ResponderEliminarTerceira linha do texto acima"...de alguns fins de tarde...".
Não estive lá, mas senti o dourado nos meus olhos. Obrigada.
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