sexta-feira, 17 de junho de 2022

O Murphy e a Fofinha

– Ah! Eras tu, meu malandreco!
– Pois. Já sabes. Aqui, quem não fala duas línguas não se amanha!...
A Fofa, arraçada de sagrada da Birmânia, branquinha no seu pêlo farto, bem no ouvia, quando se deitava no peitoril da janela a gozar da mornidão do sol-pôr. Eram uns miados fora do comum, dolentes, calorosos, de paixão… Hesitou um dia, hesitou dois. Ao terceiro, sem que os donos se apercebessem, escapuliu-se sorrateiramente e foi direitinha à esquina donde vinham os maviosos miados. E deu de caras com o Murphy, o cão de água dos vizinhos!
Aculturação precisa-se!
Ou seja: mesclar paulatinamente a memória, o tradicional, mais vivo, porventura, no interior, com as novidades colhidas noutros horizontes alheios ao nosso Algarve. Os Murphies e as Fofinhas.
Souberam os Romanos adaptar-se aos costumes dos indígenas que por aqui encontraram, inclusive não lhes repudiando as divindades, respeitando-as e, até, fazendo-lhes ex-votos. Por seu turno, os indígenas começaram a adaptar os seus nomes e os nomes dos seus deuses à gramática latina…
Cada município algarvio despertou já para a necessidade de minimizar a dicotomia entre o interior e o litoral. Das praias se chama gente para saborear no Barrocal e na Serra as delícias da paisagem singular e das iguarias únicas.
Se muitos estrangeiros escolhem agora o interior do Algarve para gozar da sua aposentação, há que aproveitar esse potencial, criando as necessárias infraestruturas, não apenas de restauração, comércio e alojamento, mas também de circulação. Urge que S. Brás, até agora preocupado sobre a circulação na vila, insista junto das entidades competentes para obter ligações exteriores mais confortáveis e rápidas. Recordo aquela senhora que, um dia, me disse: «Não diligencie para alcatroar a nossa estrada. Nós queremo-la assim, com buracos, para evitar que venha gente e nos quebre o sossego que temos!»…
E nós a queixarmo-nos de Lisboa que só olha para o seu umbigo!...

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 307, 20-06-2022, p. 13.

8 comentários:

  1. Será que a senhora tem mesmo razão???

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  2. Eu já ia partilhar a história de uma gata levada da breca, mas voluptuosa, que no meu temporário jardim seduzia todos os gatos das redondezas, quando percebi que o texto ia por outras estradas. A primeira a da aculturação, de acolhimentos recíprocos: os nomes...os trajes...a gastronomia. Daí a possibilidade de autóctones, numa região, manterem as suas tradições civis e religiosas por tolerância conveniente do ocupante. Depois a interdependência, por partilha de saberes, entre regiões distintas entre si, com diferentes potencialidades. Mas a diversidade de pessoas e de opiniões, faz a riqueza da vida (às vezes um bocadinho conflituosa): há quem aceite e promova a criação de pontes de comunicação, neste caso estradas, entre todas, e há quem (os habitantes locais) não queira ver o sossego interrompido e prefira viver na paz quase bíblica. Talvez este seja um dos comentários mais longos que faço, o que prova que um texto curto, pode ter um miolo sumarento, como este que o autor partilha connosco e que muito agradeço.

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    1. E eu fico muito grato por crónica tão singela haver provocado tão suculenta reflexão!

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  3. Quem beneficia realmente com a melhorias das acessibilidade ao interior? Está é uma questão que há muito se coloca, mas cuja complexidade torna a resposta difícil.

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    1. Essa questão faz-me lembrar a da senhora que tinha uma casa servida por um caminho de cabras; eu disponibilizei-me a mexer os cordelinhos para o melhorar, ao que ela ripostou «Não, não faça isso! Preferimos assim, que preservamos a nossa privacidade!». Certo é que estradas a impossibilitar velocidades proporcionam, por seu turno, mais atenta observação das belezas naturais. Tenho amigos que, sempre que podem, fogem das auto-estradas!

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  4. De: maria jacinta
    19 de junho de 2022 17:24
    Que bela extrapolação. As fantasias dos animais e a sua perspicácia ajudam-nos a olhar para nós, o resto é uma vida complicada que procuramos viver como podemos. Por acaso já tenho ouvido pessoas dizerem que não querem nem estão interessadas em caminhos de mais fácil acesso, pois assim se protegem vilas e populações. Mas o progresso, ai ai, o progresso.

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  5. Bom, como sempre! Muito obrigado pelas seus sempre belos e inspirados textos.
    VM

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  6. De: Vanda Fernandes
    Enviada: 19 de junho de 2022 19:57
    Muito obrigada, Amigo, pelos teus textos, sempre sugestivos e originais! Consegues dar vida a moscas,gatos, cães e humanos, numa miscelânea tão imprevisível!!!
    Muitos parabéns e continuação de excelente inspiração!

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