Vão-se os livros ajuntando naquele cantinho de estante destinado à espera do dia sereno para os saborear. Chegou a vez deste Chorei de Véspera, de Isabel Nery, que traz como subtítulo «Ensaio sobre a morte, por amor à vida». Data de 2016, a autora deu-o por concluído a 10 de Abril de 2015 e começa-o com esta epígrafe:
«Esta é a minha
história. Nasci no dia 20 de abril de 1971, às dezassete horas e dez minutos, e
devia ter morrido no dia 10 de abril de 2009, às doze horas e trinta. Mas não
morri. Aqui vos conto porquê.»
E termina:
«Não é toda a
verdade. Mas é a verdade».
Quando, parada
num semáforo, viu no tablié do carro a data de 10 de Abril, correram-lhe as
lágrimas pela face. O aniversário!... Verificou depois que o calendário estava
adiantado; daí o título: chorara… de véspera!
Volume de capa
rija, maneirinho. 176 páginas. D’A Esfera dos Livros. Apresentação leve: 21
capítulos pequenos, de título branco sobre fundo negro, transcrição dum poema
ou citação na página par correspondente. Assim. Para obrigar à necessária pausa.
Narra o livro,
com enorme clarividência, o que foi o seu peregrinar – Hospital de Cascais,
casa, Hospital de S. Francisco Xavier, Egas Moniz… Sentimentos, situações,
reações próprias e alheias. Acutilante. «Misto de ensaio e reportagem, escrito
em ritmo de romance», escreveu-se na apresentação.
Isabel Nery, jornalista
da Visão e detentora já de prémios por reportagens feitas, especializou-se
em temas de saúde e hospitais. Saliente-se, por exemplo, Vida Interrompida,
que deu origem a sugestiva e eloquente exposição que esteve patente na Casa de
Santa Maria, em Cascais, e no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra,
entre outros locais do País.
O AVC que teve
– o rebentamento, como é característico do acidente vascular cerebral, dum vaso
sanguíneo e a sangue a invadir espaços do cérebro por onde não deveria andar… –
proporcionou-lhe a experiência ímpar que sedutoramente descreve. Seguimo-la na
ânsia, na expectativa. Sabemos que sobreviveu, porque conseguiu contar os transes
por que passara, e isso nos agrada, nos ajuda a aliviar a nossa própria ansiedade.
Tudo – ou quase
tudo (depende da vivência de leitor, claro!) – impressiona e cativa. Recordo, a
título de testemunho, duas passagens.
A primeira, a chegada
ao hospital de Cascais (o antigo) em Sexta-feira Santa de 2009. A doente,
Isabel, ao ser atendida na urgência, explica miudamente o que sentiu e conclui,
peremptória: «Estou a ter um AVC». As múltiplas situações semelhantes que já
lhe haviam descrito para as reportagens, a que juntou de imediato o muito que
lera sobre o assunto permitiram-lhe avançar o diagnóstico. A senhora dra. não
gostou. Que a médica era ela e não a doente! Creio – aqui para nós – ser essa
uma das situações para que os estudantes de Medicina são preparados, para
saberem como agir… Nessa Sexta-feira Santa (que diabo!), porém, a sra. dra.
esqueceu o aprendido e não gostou mesmo nada do que ouviu e, sobretudo, do tom
assertivo da afirmação «Estou a ter um AVC!». Resultado? O habitual: a doente
teve alta, aqui era uma vulgar dor de cabeça, a doente era jornalista e queria
mostrar-se…
A via sacra começou
aí e só não terminou em crucifixão mortal, porque, pelo meio, houve «verónicas»
que se não limitaram a limpar o rosto da paciente, mas a aplicar-lhe, em devido
momento, o curativo essencial.
A segunda
passagem: a imprescindível TAC e o suplício da imobilidade, encafuada num túnel,
ainda que de bombardeamento atenuado por uma qualquer música de fundo. Isabel
pediu uma caneta de plástico e que lhe deixassem levar o Moleskine. Acederam a custo,
estupefactos. Passou o tempo da TAC a escrever (“catorze páginas de caligrafia
disforme”). Fenómeno nunca visto! Os técnicos, admirados, fotografaram. E perguntaram
ao Nuno: «Porque é que a sua mulher está sempre a escrever?». Ao que ele
respondeu, singelamente: «É jornalista…» (p. 145).
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 14-06-2022: https://duaslinhas.pt/2022/06/a-historia-de-um-avc/
Sei muito bem de "aventuras" semelhantes, em que os médicos não conseguem descobrir a gravidade de um problema de saúde e um dia a situação converte-se naquele ponto em que é quase tarde de mais...Para a Isabel Nery vai a minha admiração. O seu percurso traduz essa força que a levou a viver. Para o autor do belo texto, o meu bem haja. É através dele que temos conhecimento do caso que deu origem ao livro. Chorei de Véspera, que vou procurar dentro de dias.
ResponderEliminarVi e li exposição e livro, sempre disse que deveria ser reposta com mais divulgação, grande Isabel e quem a apoiou não esquecendo a (mãe) nossa Júlia Nery.
ResponderEliminarBem haja prof. por estar atento e nos colocar ao corrente do que tem interesse.
Maria Helena
"Vida Interrompida, que deu origem a sugestiva e eloquente exposição que esteve patente na Casa de Santa Maria, em Cascais,"