Sempre me causou perplexidade aquele singelo rol de nomes, sem explicação plausível. Placa de jazigo de família romana seria, sem dúvida; mas… que relação teria havido entre as pessoas ali citadas?
A placa
Ostentando o número de inventário B-144, está no
Museu Regional de Beja Rainha D. Leonor uma placa romana com inscrição. Foi achada
em Setembro de 1941 na Herdade da Amendoeira e oferecida por José Baptista
Crujo, conforme se lê na p. 45 do livrinho Museu Regional de Beja, datado
de 1946, da autoria de Abel Viana. É, aí, o nº 54 dos monumentos epigrafados que
constituíam, à altura, a colecção do museu.
Tive
oportunidade de confirmar que está completa e é de mármore do tipo Estremoz /
Vila Viçosa (e não de Trigaches, como o são a maioria dos monumentos romanos de
Beja). Mede 48 cm de alto, 93 de largura e apenas 6,5 de espessura. Não tem qualquer
molduração e, por esse motivo, não custa a crer que se terá destinado a ser incrustada
num edifício. O mais normal, embora – como de seguida se verá – não apresente qualquer
das habituais fórmulas funerárias, é que fosse letreiro a colocar no frontispício
de um jazigo.
É
bem simples esse letreiro. Redigido em latim, diz o seguinte:
Décimo
Júlio Navo, filho de Décimo, da tribo Galéria; Júlia Arbura, filha de Tito; Corânia;
Décimo Júlio Saturnino, filho de Décimo, da tribo Galéria; Octávia.
O que se sabe da herdade
Numa das suas bem oportunas “notas históricas,
arqueológicas e etnográficas do Baixo Alentejo” que, no Arquivo de Beja,
foi publicando em meados da década de 50, referiu-se Abel Viana (nº 12, 1955,
p. 30) à existência, numa Herdade da Amendoeira da freguesia das Neves, de vestígios
arqueológicos que não especificou. Por esse motivo, uma Herdade da Amendoeira da
freguesia das Neves figura, com o número 7163, no inventário oficial dos sítios
arqueológicos de Portugal e aí se escreve: «Uma inscrição funerária, provavelmente
procedente de um jazigo familiar; outros vestígios romanos não especificados».
Nada mais. Aliás, o topónimo Herdade das Amendoeiras pertence à União das Freguesias
de Santiago Maior e S. João Baptista.
O
que se poderá dizer, então?
O que se
considera, hoje, como um dado adquirido, ainda que possa estar contaminado com as
nossas ideias actuais: na villa, ou seja, a casa senhorial existente nessa
herdade dos arredores da colónia, viveu a família de que a placa nos dá mui singela
notícia. Apenas nomes nela vêm referidos, o que pode ter-se por normal, porquanto
se tratava de domínio privado e somente importava fazer menção, para os familiares,
de quem ali fora sepultado. Mas… será sempre aliciante pensar que um dos
defuntos possa ter sido o Décimo Júlio Saturnino, a quem os libertos públicos
de Pax Iulia homenagearam com um busto (edição de 22-10-2021). Família importante
seria!...
O que esta placa não diz
Estamos
habituados a ver no frontispício dos jazigos de família dos nossos cemitérios,
lateralmente, uma série de espaços rectangulares destinados a virem a ser aí inscritos
os nomes dos entes queridos, à medida que nele forem sendo sepultados e pela
ordem estabelecida. Sabe-se também que raramente essa intenção inicial é
cumprida e, por isso, raro será o jazigo em que as placas inscritas
correspondam aos defuntos nele depositados.
Na
actualidade, porém, as datas e os apelidos ajudarão a estabelecer genealogias:
o pai, a mãe, o irmão… Tal não acontece na placa da Herdade da Amendoeira e,
por conseguinte, ocorre perguntar: como foi? Que relação familiar – sim, relação
familiar terá havido! – se poderá apontar, na medida em que nada se diz e há
nomes de senhores e de senhoras?
Há,
todavia, um pormenor que não é de somenos e não poderia passar despercebido ao
epigrafista: a paginação, ou seja, a posição que cada identificação ocupa no
espaço epigrafado. Teve, por isso, o meu prezado amigo Marc Mayer, da Universidade
de Barcelona, a seguinte explicação, que partilho inteiramente:
«Em princípio,
parece que dois irmãos, ou melhor, o pai e o filho aí estão sepultados com suas
respectivas esposas. O primeiro deles casado, em segundas núpcias, com uma Corânia,
itálica, e, em primeiras, com uma mulher das suas relações, seguramente uma parente
relativamente próxima. O segundo personagem casa-se com uma Octávia,
seguramente também itálica».
Na verdade, o segundo
nome de Júlia é Albura, que se enquadra na onomástica pré-romana, horizonte
linguístico que, aliás, o nome Navus também poderá sugerir, na medida em que,
embora latino, detém um significado bem concreto: diligente, activo. E tanto Corania
como Octavia são nomes de família bem romanos.
Não há dúvida que,
pela identidade dos nomes – quer o primeiro, Décimo, quer o da família, Júlio –,
os dois personagens masculinos serão irmãos ou pai e filho. Adianta Marc Mayer
uma sugestão que não deixa de ser deveras aliciante: «Seria interessante
conseguir-se saber se, no tempo em que esta inscrição se insere, terá havido
uma nova chegada de imigrantes ou de veteranos» a Beja. Nós, que estamos já
habituados a ver chegar levas de imigrantes e a sentir o efeito que novos
rostos femininos podem provocar no relacionamento social e familiar, até não
nos custa pensar que, há dois mil anos, isso possa ter acontecido em Pax Iulia…
Menos ardilosa será a hipótese de Albura ter falecido e Corânia ter vindo a ocupar,
naturalmente, o seu lugar.
Certo é que se
nos afigura bem credível – até, repita-se, pelo modo como a paginação se
apresenta – que os familiares destes dois cidadãos romanos de Beja, o Navo e o
Saturnino, decidiram juntar no mesmo jazigo os seus restos mortais e os das mulheres
que eles amaram.
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo [Beja], 24-06-2022, p. 19.
Acho a Epigrafia uma ciência fascinante.
ResponderEliminarNeste texto, tudo começa na Herdade das Amendoeiras (até o nome é poético) da freguesia das Neves no espaço da que foi Pax Julia. Uma placa de mármore de Estremoz, que tudo indica seja uma "inscrição funerária" apresenta um rol de nomes que podem ter sido familiares. Talvez, sugere o autor, a placa estivesse num jazigo da família romana que habitou a casa senhorial da villa.
E a descoberta do Passado, baseada num rol de nomes concretos, admite que se solte a imaginação na corrida atrás de uma verdade.
Muito bonito este texto que nos leva pela mão numa viagem de retrocedimento, num convite à participação.