sábado, 25 de junho de 2022

Vida conjugal desvendável numa inscrição romana

         

        Sempre me causou perplexidade aquele singelo rol de nomes, sem explicação plausível. Placa de jazigo de família romana seria, sem dúvida; mas… que relação teria havido entre as pessoas ali citadas?

A placa
            Ostentando o número de inventário B-144, está no Museu Regional de Beja Rainha D. Leonor uma placa romana com inscrição. Foi achada em Setembro de 1941 na Herdade da Amendoeira e oferecida por José Baptista Crujo, conforme se lê na p. 45 do livrinho Museu Regional de Beja, datado de 1946, da autoria de Abel Viana. É, aí, o nº 54 dos monumentos epigrafados que constituíam, à altura, a colecção do museu.
            Tive oportunidade de confirmar que está completa e é de mármore do tipo Estremoz / Vila Viçosa (e não de Trigaches, como o são a maioria dos monumentos romanos de Beja). Mede 48 cm de alto, 93 de largura e apenas 6,5 de espessura. Não tem qualquer molduração e, por esse motivo, não custa a crer que se terá destinado a ser incrustada num edifício. O mais normal, embora – como de seguida se verá – não apresente qualquer das habituais fórmulas funerárias, é que fosse letreiro a colocar no frontispício de um jazigo.
            É bem simples esse letreiro. Redigido em latim, diz o seguinte:

            Décimo Júlio Navo, filho de Décimo, da tribo Galéria; Júlia Arbura, filha de Tito; Corânia; Décimo Júlio Saturnino, filho de Décimo, da tribo Galéria; Octávia.

O que se sabe da herdade
            Numa das suas bem oportunas “notas históricas, arqueológicas e etnográficas do Baixo Alentejo” que, no Arquivo de Beja, foi publicando em meados da década de 50, referiu-se Abel Viana (nº 12, 1955, p. 30) à existência, numa Herdade da Amendoeira da freguesia das Neves, de vestígios arqueológicos que não especificou. Por esse motivo, uma Herdade da Amendoeira da freguesia das Neves figura, com o número 7163, no inventário oficial dos sítios arqueológicos de Portugal e aí se escreve: «Uma inscrição funerária, provavelmente procedente de um jazigo familiar; outros vestígios romanos não especificados». Nada mais. Aliás, o topónimo Herdade das Amendoeiras pertence à União das Freguesias de Santiago Maior e S. João Baptista.
            O que se poderá dizer, então?
O que se considera, hoje, como um dado adquirido, ainda que possa estar contaminado com as nossas ideias actuais: na villa, ou seja, a casa senhorial existente nessa herdade dos arredores da colónia, viveu a família de que a placa nos dá mui singela notícia. Apenas nomes nela vêm referidos, o que pode ter-se por normal, porquanto se tratava de domínio privado e somente importava fazer menção, para os familiares, de quem ali fora sepultado. Mas… será sempre aliciante pensar que um dos defuntos possa ter sido o Décimo Júlio Saturnino, a quem os libertos públicos de Pax Iulia homenagearam com um busto (edição de 22-10-2021). Família importante seria!...
 
O que esta placa não diz
            Estamos habituados a ver no frontispício dos jazigos de família dos nossos cemitérios, lateralmente, uma série de espaços rectangulares destinados a virem a ser aí inscritos os nomes dos entes queridos, à medida que nele forem sendo sepultados e pela ordem estabelecida. Sabe-se também que raramente essa intenção inicial é cumprida e, por isso, raro será o jazigo em que as placas inscritas correspondam aos defuntos nele depositados.
                Na actualidade, porém, as datas e os apelidos ajudarão a estabelecer genealogias: o pai, a mãe, o irmão… Tal não acontece na placa da Herdade da Amendoeira e, por conseguinte, ocorre perguntar: como foi? Que relação familiar – sim, relação familiar terá havido! – se poderá apontar, na medida em que nada se diz e há nomes de senhores e de senhoras?
            Há, todavia, um pormenor que não é de somenos e não poderia passar despercebido ao epigrafista: a paginação, ou seja, a posição que cada identificação ocupa no espaço epigrafado. Teve, por isso, o meu prezado amigo Marc Mayer, da Universidade de Barcelona, a seguinte explicação, que partilho inteiramente:
«Em princípio, parece que dois irmãos, ou melhor, o pai e o filho aí estão sepultados com suas respectivas esposas. O primeiro deles casado, em segundas núpcias, com uma Corânia, itálica, e, em primeiras, com uma mulher das suas relações, seguramente uma parente relativamente próxima. O segundo personagem casa-se com uma Octávia, seguramente também itálica».
Na verdade, o segundo nome de Júlia é Albura, que se enquadra na onomástica pré-romana, horizonte linguístico que, aliás, o nome Navus também poderá sugerir, na medida em que, embora latino, detém um significado bem concreto: diligente, activo. E tanto Corania como Octavia são nomes de família bem romanos.
Não há dúvida que, pela identidade dos nomes – quer o primeiro, Décimo, quer o da família, Júlio –, os dois personagens masculinos serão irmãos ou pai e filho. Adianta Marc Mayer uma sugestão que não deixa de ser deveras aliciante: «Seria interessante conseguir-se saber se, no tempo em que esta inscrição se insere, terá havido uma nova chegada de imigrantes ou de veteranos» a Beja. Nós, que estamos já habituados a ver chegar levas de imigrantes e a sentir o efeito que novos rostos femininos podem provocar no relacionamento social e familiar, até não nos custa pensar que, há dois mil anos, isso possa ter acontecido em Pax Iulia… Menos ardilosa será a hipótese de Albura ter falecido e Corânia ter vindo a ocupar, naturalmente, o seu lugar.
Certo é que se nos afigura bem credível – até, repita-se, pelo modo como a paginação se apresenta – que os familiares destes dois cidadãos romanos de Beja, o Navo e o Saturnino, decidiram juntar no mesmo jazigo os seus restos mortais e os das mulheres que eles amaram.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Diário do Alentejo [Beja], 24-06-2022, p. 19.

1 comentário:

  1. Acho a Epigrafia uma ciência fascinante.
    Neste texto, tudo começa na Herdade das Amendoeiras (até o nome é poético) da freguesia das Neves no espaço da que foi Pax Julia. Uma placa de mármore de Estremoz, que tudo indica seja uma "inscrição funerária" apresenta um rol de nomes que podem ter sido familiares. Talvez, sugere o autor, a placa estivesse num jazigo da família romana que habitou a casa senhorial da villa.
    E a descoberta do Passado, baseada num rol de nomes concretos, admite que se solte a imaginação na corrida atrás de uma verdade.
    Muito bonito este texto que nos leva pela mão numa viagem de retrocedimento, num convite à participação.

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