segunda-feira, 30 de maio de 2022

Um epitáfio romano de carinhoso mistério…

 Encontra-se no Museu Regional de Beja – com o nº de inventário MRB.03005 – uma bem curiosa estela funerária romana, a merecer atenção pela carinhosa mensagem que dela se desprende.

A estela
            «Estela» é a designação ‘técnica’ dada a um monumento pétreo destinado a ser colocado ao alto. Enquanto a placa pressupõe a fixação numa parede, a estela enterra-se no chão, pelo que, habitualmente, se se tiver pensado em gravar nela uma inscrição, a parte inferior fica em branco ou porque se enterra ou porque haverá um soco munido de ranhura para a suster. No caso de que nos vamos ocupar há mesmo uma ranhura horizontal a delimitar espaço que se devia manter escondido.
As dimensões totais são as seguintes: altura, 77 cm; largura, 40; e espessura, 18. É, aliás, a escassa espessura uma das características das estelas.
De imediato salta à vista a graciosidade do conjunto. Esculpida em ‘mármore’ de Trigaches, tem um frontão triangular decorado; a inscrição foi inserida num quadrado de 24 x 26 cm, cuidadosamente moldurado, e, sob ele, uma de cada lado, gravaram-se duas rosetas hexapétalas, já um tudo-nada feridas pela erosão. Aliás, esse motivo decorativo repete-se também sob o frontão (aí, rosetas quadripétalas), como que a enquadrar tudo. Um toque de beleza.
Será, porventura, o motivo central do frontão que – além da inscrição, obviamente – mais despertará a atenção, pela sua singularidade, não apenas no quadro dos monumentos epigráficos conhecidos de Pax Iulia, mas também no âmbito da Lusitânia romana. Escrevemos, em 1984, que estávamos perante uma tipologia «estranha à região» e já se explicará porquê.
É que de um eixo central partem, como braços, em relevo, elementos a terminar em voluta, que lembrarão certamente – para os mais dados a observações botânicas – as folhas dos fetos a romper, uma evolução que não deixa de nos encantar, por quase sentirmos como é que, paulatinamente, a folha se vai desenrolando e se estende. Esse motivo foi também, durante muito tempo, típico do báculo dos bispos, qual cajado de pastor. Eram os antigos mais dados que nós a essa observação da Natureza e a dela fazerem transpor, para a vida humana, como que em símbolo, os sentimentos que inspiravam. Aqui, no feto-planta, o lento mas seguro espreguiçar-se para o alto, em busca da luz… Árvore da vida se lhe poderá chamar. Uma árvore de perene folhagem e sempre em renovação – como todos desejaríamos que fossem as nossas existências…
Não abunda a decoração de índole vegetalista nos monumentos epigrafados da cidade de Pax Iulia. Motivo idêntico a este só se encontrou num dos topos da cupa (monumento em forma de pipa estilizada) procedente da Herdade de Santa Luzia (freguesia de S. Brissos): o epitáfio de Júlio Primião, falecido aos 65 anos. Há um capitel no Museu de Faro com báculos gravados desta mesma forma; na lucerna 557 de Cartago, apresentada por Jean Deneauve no seu catálogo (prancha LVIII), o palmito assume iguais características formais.
 
A inscrição
Altura é, pois, de sabermos o que significa, em português, a inscrição latina grafada na estela:´~
 
                    Aqui jaz Híspalo, servo de Boco, de três anos.
                    Que a terra te seja leve.
                    Euhodo fez.
 
Sim, estremecemos ao ler e – caso não soubéssemos das crueldades ainda existentes nesta 2ª década do século XXI em muitas partes do mundo dito civilizado… – ousaríamos perguntar: «Como foi possível escravizar um menino de três anos?».
Sim, estremeceríamos com a nossa mentalidade actual; necessitamos, porém, de recuar dois milénios e fazer perguntas. Primeiro, ¿quem foi Euhodo? Depois, ¿porque é que foi ele quem fez (não mandou fazer!...) o monumento funerário para o menino? Finalmente, ¿por que razão se escreve – com todas as letras, dir-se-ia – que o menino foi escravo?
Ocorre voltar à descrição que fizemos e interrogarmo-nos, perante a riqueza da decoração apresentada: ¿como é possível um escravo ter monumento assim, tão bonito? E Euhodo, ao escrever «fez», manifesta não apenas orgulho na beleza que conseguiu mas, sobretudo, alegria por ter logrado mostrar desta sorte toda a sua enorme ternura pelo bebé que partiu.
            Interrogamo-nos.
            A dúvida, no entanto, esclarecer-se-á se, nessa interrogação, incluirmos o terceiro personagem mencionado na epígrafe: Boco, o dono de Híspalo! Boco era o senhor, decerto alguém importante do ponto de vista social e económico. Por conseguinte, ter sido seu escravo ou estar destinado a ser seu escravo não constituiria desdoiro mas uma honra. Euhodo – que pensamos poder ter sido o pai de Híspalo – não hesitou: também ele pertenceria à família de Boco, o senhor mui provavelmente até contribuiu para a erecção de tão sugestivo sepulcro – e, mau grado a dor sentida, a preciosa homenagem estava feita! Para sempre! De tal modo que, hoje, mais de dois mil anos passados, ainda nos enternece!
            Nada mais sabemos. Nem sequer temos registo de quando nem onde a pedra foi encontrada. Deparámo-nos com ela no Museu, nos primórdios da década de 80, ainda nem número de inventário tinha! Na cidade ou nos arredores se terá achado. Alicia-nos pensar que falará de gente vinda do Norte de África, origem que uma investigadora já sugeriu para o nome Boco. Alicia-nos pensar que Euhodo possa ter sido o oleiro da oficina de Gneu Ateio, de que se encontrou uma marca na vizinha villa romana das Represas … Mas… nada mais sabemos!

                                                                       José d’Encarnação

            Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2092, 27-05-2022, p. 13.

1 comentário:

  1. Que saudade das aulas do amigo Prof. Dr. José d' Encarnação!!!!

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