sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Milhões, milhões, milhões!...

     Septuagenário me confesso, incapaz de compreender exactamente o significado da palavra «milhões», mormente quando ela é aplicada a verbas. Verbas de venda e compra de jogadores; verbas que foram desviadas por grupos organizados, com a convivência de alguns outros em que se depunha confiança; verbas necessárias para colmatar os prejuízos causados por um tornado ou uma chuvada maior que a falta de adequado planeamento urbanístico provocou; milhões que se esvaem, porque o Estado os não soube aproveitar; milhões que podem ganhar-se, se se jogar no… euromilhões ou mesmo na lotaria ou no totoloto…
      Tornou-se tão banal que nem sequer nos vem à cabeça, um dia, fazer a comparação com os contos de reis de não há muito tempo, quando o milionário era aquele que lograra amealhar ou ganhar… mil contos de réis!
      Curiosamente – cá está a ‘história’ do septuagenário… – sempre que consciencializo a expressão «milhões de euros» (a maior parte das vezes referente a dívidas, a falcatruas, a… ‘branqueamento de capitais’, que, inocente, não sei o que isso é…), o meu pensamento corre, vamos lá saber porquê, para o restaurante do meu bairro. É que o restaurante do meu bairro tem um recanto que eu ousaria chamar «de ternura». Ali se sentam, ao almoço, quatro ou cinco dos anciãos do bairro, que vivem sozinhos numa das casas próximas. Outro dia, demos pela falta de um: tinha partido!... Quando lá vou buscar comida, procuro ter sempre um bom-dia simpático, que já os conheço há décadas e sinto que aquele tempo do almoço e o do antes e o do depois é, para cada um deles, o bom momento do dia. Lá comem a sua sopita, meia dose do prato do dia, regada, quando o médico não proíbe, por um copito de vinho… E conversam do hoje, do ontem e pouco do amanhã, que o televisor ali na parede ao pé deles raramente lhes traz motivo para pensar no amanhã.
      «Recanto de ternura» o baptizei eu, para mim mesmo, que a ninguém ainda o disse. A ternura de um envelhecer que queremos sereno, a viver dia após dia com os ralos euritos da reforma, quando no televisor ao pé se fala é só de milhões, de milhões… Recordo-me, amiúde, nos meus dias, dos vultos desse recanto, até porque também minha tia, que já passou dos 90, pertence ao grupo. E penso: «Se eu não sei bem o que é isso de milhões, que ideia é que eles farão, diante do pratinho de sopa?».
            
                                          José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 702, 15-02-2017, p. 11.

18 comentários:

  1. Joaquim Isqueiro
    Que bom percorrer as linhas de letras/imagens deste teu escrito, sempre com os olhos lubrificados, não por tristeza, mas por uma serena ternura, que é a que sentimos ou sabemos ter para com a vida, enquanto nos entristecemos com as nuvens negras do "milhões" que nos vão ensombrando o viver... Obrigado, grande amigo, e que essa "pena" não deixe de escorrer imagens que nos fazem estar despertos!... Grande abraço...!

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  2. Cecilia Travanca
    Um texto muito belo... e ternurento. Um abraço, com a mesma ternura!

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  3. Teresa Silva
    Sempre a escrever com o coração na pena! No meu modesto entender, vida de qualidade é assim mesmo: viver sem se entregar ao medo, envelhecer com a capacidade de comunicar e amar os outros! Bem haja, querido Professor José d'Encarnação!

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  4. Maria Herminia Roberto
    Adorei! Só o professor poderia ter a definição tão perfeita sobre os velhotes do nosso bairro! Que também eu já estou a entrar nesse grupo!!!!!

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  5. Helena Santos
    Esse texto lembra o meu avô, que partiu há 4 anos, já na casa dos 90. Também pertenceu a esse grupo, se não me engano, professor, desse mesmo bairro. Muito obrigada!

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  6. Zelia Marques Rodrigues
    Gostei! Continua a escrever, sff.

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  7. Maria Conceicao Neves
    Mas que vem a ser a palavra envelhecer no que toca a si? Não acredito que já tenha em mente tais ideias! É afastá-las quanto antes! Há sempre maneira de contornar esta situação, relembrando os bons momentos que passamos ao longo da vida, nunca esquecendo o que Deus nos destinou noutras situações. Um abraço desta sua velha amiga. Beijos!!

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  8. Jose Martins Colaço
    Neste "jardim à beira-mar plantado" são os "retiros de ternura" os únicos locais, e momentos, em que os anciãos se sentem participativos e vivos. Obrigado pela tua sensibilidade e, sobretudo, pelo conhecimento de uma realidade que muitos (os tais dos milhões...) teimam em ignorar.

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  9. Vitor Cantinho
    Retiro de outra tertúlia de "combate" aos "milenaristas" da Comunicação Social. Adivinho que a mesa do restaurante seria mesmo por baixo do sítio do aparelho de tv...

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  10. Alice Alves Oliveira
    Achei este comentário uma ternura, eu que também sou septuagenária. Obrigada Professor! Vou levar.

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  11. Sonia Carmona Antunes
    Caro Professor e amigo,
    Mais uma vez, adorei estas palavras tão ternurentas sobre uma realidade que tende a desaparecer. Só os sábios sabem envelhecer, com amor para dar. Continue a presentear-nos com estes tão enriquecedores textos. Aliás, só podemos esperar isso de si. Bem haja! Beijos de amizade, Caro Professor!

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  13. Margarida Lino
    Meu querido amigo,
    Uma vez mais, as tuas palavras chegam ao coração! Bj

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  14. Cecília Figueiredo
    É assim. Hoje, só os velhos se sentam para conversar, todos os outros correm para tentar encontrar esses milhões... imaginários!

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  15. Cecília Figueiredo
    É assim. Hoje, só os velhos se sentam para conversar, todos os outros correm para tentar encontrar esses milhões... imaginários!

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  16. Ana Maria Coelho
    19/2 às 20:00
    Ainda se encontra alguns recantos ternurentos, mas a juventude só telemóveis, os adultos vivem correndo à procura dos milhões, as notícias são só desgraças e cada um vive para si sem conhecer os próprios vizinhos.

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  17. Fátima Barros
    Que bonito texto, é realmente um "Recanto de ternura"! Muito obrigada pela sua simpatia e atenção. Um abraço.

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