– Desculpa,
Zé! Deixei-me dormir!
O despertador
tocou, calei-o e continuei a sonhar. Acordei 40 minutos depois, num
sobressalto. Deixara-me dormir e tudo se atrasara por isso.
E, enquanto fazia
as abluções matinais, dei comigo a pensar na força deste verbo na sua forma
reflexa: deixar-se… E mesmo na sua voz activa: deixa estar!
Lembrei-me do
fado de Amália, «Lágrima»: “Estendo o meu xaile e deixo-me adormecer».
Lembrei-me das
inúmeras vezes em que meu pai falava de minha avó materna: «Deixa que eu faço,
deixa que eu ponho» – ela é que gostava de fazer e não queria que os outros se incomodassem…
Lembrei-me da
canção dos Beatles, ‘Let it be’, deixa que isso aconteça. E de como o
verbo to let, em inglês, também é muito usado.
Lembrei-me do
dia em que ouvi dois numa zanga feroz: «Deixa-me da mão, não me chateies!».
Lembrei-me do
jogo do rapa da minha meninice: «Rapa, tira, deixa, põe!». Que, em italiano, é o
«lascia o raddoppia», «ou desistes ou duplicas».
Não gostei
deste sinónimo ‘desistir’. Em jeito de deixar cair os braços, abandonar o projecto,
sucumbir perante a dificuldade surgida. Qual náufrago que pensa ser impotente já
e não agarra nas últimas forças para sobreviver. Não gosto.
Sim, hoje
deixei-me dormir. Quero, porém, que, conscientemente, não volte a acontecer!
José d’Encarnação
Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 311, 20-10-2022, p. 13.
Julieta Lima
ResponderEliminarFoi muito bom ler o seu texto. Refrescante.
Espero que o seu ombro o "deixe da mão " para que possa continuar a abraçar-nos com as suas escritas.
Regina Anacleto
E eu deixei-me deleitar com o seu texto!
Marisol Ferreira
Fabuloso, Professor!
Acho que, por causa deste texto e do muito que lembra (até das vezes em que nos deixamos dormir, que é quando o sono sabe melhor) ainda vai pegar de novo a moda do deixei-me. Olhe "deixei-me encantar por este texto..."; "deixei-me comover pelo fado Lágrima e vai de chorar que nem uma Madalena" (também esta expressão tem que se lhe diga) e mais...É que o "deixei-me" descobri agora, tem o enanto do escorregar pelo corrimão, numa prazerosa violação de regras da infância...Muito grata por esta partilha.
ResponderEliminarEra o ENCANTO e não enanto...Deixei-me levar pelo entusiasmo.
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