quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Deixar-se ir...

            – Desculpa, Zé! Deixei-me dormir!
            O despertador tocou, calei-o e continuei a sonhar. Acordei 40 minutos depois, num sobressalto. Deixara-me dormir e tudo se atrasara por isso.

E, enquanto fazia as abluções matinais, dei comigo a pensar na força deste verbo na sua forma reflexa: deixar-se… E mesmo na sua voz activa: deixa estar!
Lembrei-me do fado de Amália, «Lágrima»: “Estendo o meu xaile e deixo-me adormecer».
Lembrei-me das inúmeras vezes em que meu pai falava de minha avó materna: «Deixa que eu faço, deixa que eu ponho» – ela é que gostava de fazer e não queria que os outros se incomodassem…
Lembrei-me da canção dos Beatles, ‘Let it be’, deixa que isso aconteça. E de como o verbo to let, em inglês, também é muito usado.
Lembrei-me do dia em que ouvi dois numa zanga feroz: «Deixa-me da mão, não me chateies!».
Lembrei-me do jogo do rapa da minha meninice: «Rapa, tira, deixa, põe!». Que, em italiano, é o «lascia o raddoppia», «ou desistes ou duplicas».
Não gostei deste sinónimo ‘desistir’. Em jeito de deixar cair os braços, abandonar o projecto, sucumbir perante a dificuldade surgida. Qual náufrago que pensa ser impotente já e não agarra nas últimas forças para sobreviver. Não gosto.
Sim, hoje deixei-me dormir. Quero, porém, que, conscientemente, não volte a acontecer!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 311, 20-10-2022, p. 13. 

3 comentários:

  1. Julieta Lima
    Foi muito bom ler o seu texto. Refrescante.
    Espero que o seu ombro o "deixe da mão " para que possa continuar a abraçar-nos com as suas escritas.

    Regina Anacleto
    E eu deixei-me deleitar com o seu texto!

    Marisol Ferreira
    Fabuloso, Professor!

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  2. Acho que, por causa deste texto e do muito que lembra (até das vezes em que nos deixamos dormir, que é quando o sono sabe melhor) ainda vai pegar de novo a moda do deixei-me. Olhe "deixei-me encantar por este texto..."; "deixei-me comover pelo fado Lágrima e vai de chorar que nem uma Madalena" (também esta expressão tem que se lhe diga) e mais...É que o "deixei-me" descobri agora, tem o enanto do escorregar pelo corrimão, numa prazerosa violação de regras da infância...Muito grata por esta partilha.

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  3. Era o ENCANTO e não enanto...Deixei-me levar pelo entusiasmo.

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