Sistemas de vigilância permitem identificar com inimaginável grau de nitidez um indivíduo a quilómetros de distância no meio duma multidão.
Dessa mesma
ilusão se fez eco uma das perguntas da série anedótica «Elefante», popular há
umas décadas: «Como é que um elefante passa despercebido no Rossio?». «Em manada»
– era a resposta.
Numa das
saborosas crónicas do jornal Reconquista, de Castelo Branco, com que regularmente
nos brinda, conta João Lourenço Roque como é deleitoso passatempo do «Portador de
BI definitivo» ter «lugar cativo em bancos de jardim, mirando guloso e embasbacado
as “gajas boas” que passam» (Digressões Interiores, Coimbra, 2011, p.
120).
Do ancião e não
só!
E se substituirmos
‘banco de jardim’ por ‘banco de corredor de uma grande superfície’, mais nos
aproximaremos desse passar despercebido no meio da multidão, habitualmente
apressada e entretida com o telemóvel.
Para ele,
porém, o tal ‘portador de BI definitivo’, ver gente rejuvenesce-o e, se ainda gozar
de boa vista e tiver aguçado espírito de observação, deliciar-se-á com a extravagância
dos penteados, o exotismo das tatuagens (as visíveis e as invisíveis imaginadas…),
aquelas calças esfarrapadas, o difícil equilíbrio da senhora em milimétricos
saltos altos... E mesmo que a cena se repita à exaustão, imaginará o mundo bem
diversificado das mensagens de telemóvel que os transeuntes recebem ou velozmente
digitam mesmo em andamento.
Não o deixarão
indiferente os contrastes: o senhor de ar preocupado, taciturno, a correr; a
senhora a dar ordens à secretária ou à empregada doméstica, enquanto ajeita o cabelo; o ancião,
como ele, apoiado em improvisada bengala de cana-da-índia; o casal a empurrar,
vaidoso, o carrinho de gémeos…
Ousará, por vezes,
querer penetrar no âmago dos pensamentos Põe-se a adivinhá-los pelos rostos. E sentirá
pena por, de dia para dia, o sorriso andar cada vez mais arredio, por mais
tardes que ali passe a olhar. E seria tão benéfico esse suave movimentar dos músculos
em todas as faces!...
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 831, 15-10-2022, p. 12.
O que este saboroso texto sugere, é que podemos tirar partido de qualquer situação em cada idade, mas...Já virei apanhar este "mas".
ResponderEliminarSem lugares cativos, porque isso daria muito nas vistas (e agora já nem preciso) também já usei os bancos das grandes superfícies, quando levada quase à força para esses lugares que não me atraem, até que ganhei coragem para dizer NÃO.
E sentadinha lá imaginava, para não morrer de tédio, a vida de cada um pelas mensagens visuais que aa aparência exterior nos oferecia.
Algumas coisas são fundamentais, de facto, para uma avaliação: a capacidade crítica traduzida pelo sorriso (sinal de cabecinha a funcionar) e o sentido da visão ainda apto.
E por causa disto lembrei-me de uma anedota muito engraçada, mas mazinha. ..
Importante mesmo é quanto me ri a ler este texto, que agradeço.