domingo, 2 de novembro de 2025

O recheio da casa

             Não, museu não era. Pairava, porém, sobre ele um génio diferente: tudo aquilo… falava! Tudo aquilo, cada um dos objetos, mesmo o aparentemente mais insignificante em tamanho, uma simples rolha, a boneca de trapos, o rádio do tempo dos afonsinos… carregavam em si uma história.

                                          

        Gabriel Pereira (1847-1911), notável homem de cultura do seu tempo e de todos os tempos pelos testemunhos que nos legou, foi chamado, um dia, a avaliar o recheio de uma casa. O que viu e como o viu fez com que ele sentisse a obrigação de o partilhar por escrito. Li essa partilha e não a quero, pois, só para mim. Vou contar. Iam ser feitas partilhas, os herdeiros decerto iriam preferir dinheiro a antigualhas.

        «Senti a poesia dolorosa do desastre. Sozinho entre preciosidades acumuladas em sucessivas gerações, que me pareciam contar histórias, invadiu-me uma saudade indefinida, motivada pelo conjunto de recordações. Iam abandonar-se, partir em diversos rumos aqueles móveis e quadros, por tantos anos companheiros».

        Poderíamos ficar por aqui – que, em catadupa, quantos casos desses conhecidos nos viriam à cabeça e, porventura, até antojaríamos que esse é capaz de vir a ser o nosso também. Nesse dia, porém, algo de aparentemente inesperado aconteceu para Gabriel Pereira:

        «De súbito, um minuete estalou o silêncio triste: um belo relógio de carrilhão anunciava o meio-dia com a sua fina sonoridade. Na ocasião, pareceu-me ver no relógio uma implacável ironia. Acabou o minuete, soaram no timbre, espaçadas, as doze horas, agudas, cruéis; e esmoreceu lentamente a última. O tempo! O tempo que tudo vai mudando e gastando».

                                           

            Parei. Ainda me parece estar a ouvir o som metálico do relógio, a lembrar-me que, afinal, iria ser verdade: que também o relógio do minuete iria partir, incógnito, para outras paragens.

            Enlevo, felicidade! – para isso contribuem (queremos que contribuam!) os quadros que comprámos ou nos ofereceram com dedicatórias até; os móveis utilitários; aquele sofá preferido para uma leve sesta; os dois ou três livros a ter sempre à mão, basto sublinhados a lápis eles estão!…

            Enlevo, felicidade, património. Valor venal, valor de memória, de valor impessoal algum dele – a ultrapassar as soleiras daquela porta e a merecer, quiçá, um dia, lugar de relevo em museu.

                                                                    José d'Encarnação

  Publicado em Duas Linhas, 2.11.2025: https://duaslinhas.pt/2025/11/o-tempo/

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Nam botes qu’eu nam bebo!

             

             A frase goza de um sentido claro: a pessoa não tem o hábito de beber (e, geralmente, o referente é o vinho) ou achou, naquele momento, que já bebera o bastante.
 Claro, claro não é, porém, tal sentido em contexto barrocalense, onde, em tertúlia de amigos, o dito significa exatamente o contrário, naquela entoação irónica que é timbre nosso.
 Surgiu-me, de repente, o idiotismo e decidi ir ver mais acerca do verbo “botar”, pois se usa também, por exemplo, assim:
– Vê lá, não botes má figura que me deixas ficar mal!
Por conseguinte, dois significados:
– um, físico; o deitar;
– outro, figurado, o de ‘aparentar’, ‘fazer com algum aparato’.
O verbo ‘botar’ tem, afinal, bem ancestrais raízes. Dizem os entendidos que pode assinalar-se como seu antepassado *bōtan, vocábulo do germânico antigo (uma das variantes do vetusto indo-europeu que está na base de todas as línguas europeias), que primitivamente significaria ‘golpear’. Daí terá vindo ‘botare’ no chamado «baixo latim», ou seja, no latim aculturado já com os linguajares locais, e também o provençal ‘bouter’, empurrar.
Na tertúlia de amigos, porém, o ‘nam botes’ nada tem de empurrar ou golpear – é, simplesmente, tomar cuidado, não vale derramar, que todas as gotas se hão de querer aproveitar em álacre companhia!

                                                           José d’Encarnação

 Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 347, 20-10-2025, p. 13.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Animais romanos em Vila Moura

 

Parte inferior do formulário

Parte inferior do formulário

Que os Romanos, ao invadirem a Península Ibérica, tiveram em mira as nossas minas de ouro e ferro já o suspeitávamos. E que, ao sentirem-se bafejados por este clima tão ameno e águas tão prazenteiras, por cá se houvessem decidido a ficar, também não é de admirar. Por isso, quando, há anos, os arqueólogos toparam com ruínas de estruturas romanas em Vilamoura, surpresa nenhuma se fez sentir.

Panorâmica do sítio romano de Vila Moura

Começou-se por caracterizar o sítio como villa, que era o tipo de estrutura de povoamento habitual nestas paragens. Aliás, a villa romana já se apontou como sendo o antepassado do monte alentejano: junto à casa senhorial se alinhavam os banhos («termas» costumamos chamar aos dos Romanos), o lagar, o celeiro, as casas para os trabalhadores.

E, sempre que se encontravam mosaicos, villa tinha de ser, porque se imaginava logo a sala principal de recepção aos convivas com mui selecto e policromado mosaico, qual genuíno tapete persa ou requintado arraiolos dos nossos dias. Por isso, tendo-se descoberto mosaicos, Vilamoura villa romana (com dois LL, à moda latina) tivera que ser.

Antes, porém, de se dar conta dos resultados da nova investigação levada a efeito pela Dra. Ana Pratas, importa esclarecer o que está por detrás do topónimo Vilamoura.  Terá sido designação, creio, quase instintiva: há estruturas habitacionais, há mosaicos… portanto, villa há-de ser, que não se lhe vai dar nome de aldeia, lugar ou sítio, nomes vulgares.

Estava-se, então, ainda nos alvores das maiores descobertas romanas por essa Europa afora e, nas zonas balneares (Biarritz, Monte Estoril, Nice, Rimini, Constantza…), a vivenda de veraneio villa teria de chamar-se.

Por outro lado, para o português comum, ‘coisa antiga’ tinha de ser «do tempo dos Mouros»,  ainda por cima neste Algarve, onde as palavras árabes ocupavam porção importante do vocabulário quotidiano. Portanto, «moura» tinha de ser: Vila Moura!

Depressa, todavia, os resultados das escavações, cada vez mais cuidadas e sistemáticas, deram a entender que se estava perante estruturas a mais para singela casa romana, ainda que envolta em nada singela magnificência.

 

Sul Informação 

Um dos mosaicos romanos no Cerro da Vila, Vilamoura

 

Um vicus

Por isso, bem analisado o conjunto, optou a Dra. Ana Pratas pela classificação do sítio como ‘vicus’. Ainda que do vocábulo latino ‘vicus’ tenha vindo a palavra «beco», dela também deriva a palavra ‘vicini, os vizinhos, os habitantes do ‘vicus’. E como nós, hoje, gostaríamos de voltarmos todos a tratar-nos por ‘vizinhos’, os que vivemos na mesma rua, no mesmo bairro!…

Mas foi mais além Ana Pratas: dada a especificidade dos vestígios detectados, na sua maior parte ligados ao mar, Vilamoura (ou o Cerro da Vila como também é chamada) tivera de ser um «vicus maritimus». Vamos, pois, por aí.

Claro: conchas de moluscos marinhos encontraram-se em quantidade. Era normal, já se sabia, e, por tal motivo, Ana Pratas decidiu-se – e bem! – a minuciosamente estudar o que de vertebrados aí se encontrara.

Que o Romano deveria ter tido animais para a lavoura, para a caça, cães de guarda, ovelhas, cabras, o porco… De resto, em mosaicos de ‘villas’ doutras paragens, havia cenas de caça (como em Conímbriga) e, até, um senhor de Pompeios decidira mandar pôr à entrada da mansão a imagem de um cão de dentes arreganhados com a legenda CAVE CANEM, «Cuidado com o cão».

 

Sul Informação 

«Cuidado com o cão», em Pompeia

Teria havido cães romanos em Vilamoura? Houve. De acordo com os restos ósseos inventariados por Ana Pratas, na sequência das intervenções arqueológicas ao longo dos anos aí levadas a cabo, encontraram-se 30 testemunhos de Canis lupus familiaris, que é o nome científico do nosso cão, depois dos 111 referentes ao porco (o ‘sus’ científico), que ocupa o primeiro lugar.

Certo é que se trata de mero sinal, porque não só os 30 testemunhos são passíveis de não se referir a 30 animais, como se trata de testemunhos referentes a vários séculos. Que o cão esteve por ali, esteve, isso é uma certeza!

Enfim, teria sido nesses seculares tempos uma vida não muito diferente da que hoje por ali vamos tendo. E, como o sítio dispõe de Centro Interpretativo, porque não agendar para um dos próximos fins-de-semana uma ida até ao local, a fim de se apreciar com os próprios olhos o que mui sucintamente aqui e agora se anotou?

Além disso, o estudo da Dra Ana Pratas – acrescente-se – acaba de ser publicado no nº 29 (2025) da revista do Arquivo Municipal de Loulé (Al-‘ulyà), que tive o gosto de apresentar a 4 de Outubro.

                                                         José d'encarnação

Publicado em Sul Informação, Outubro 12, 2025:  https://www.sulinformacao.pt/2025/10/animais-romanos-em-vilamoura/ 

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O encantamento

            «A Lara Bacelar encantou-se na noite passada, depois de uma longa espera, sem que saibamos qual a sua ligação ao mundo». 
Assim me escreveu a Maria, explicando-me que poderá ter sido a doença das vacas loucas a destruir-lhe as ligações nevrálgicas/neurológicas que a faziam corpo activo e presente. Faleceu, depois de muitos meses sem dar sinal de conexão com a vida. Encantou-se.
            – “Encantou-se”, Maria? Que queres tu dizer com isso?
           – No Nordeste do Brasil, quando alguém morre, diz-se que se encanta. Passa a ser pessoa encantada, como as nossas princesas encantadas. Adoro essa ideia. Pensar que minha mãe está encantada e que me vê quando estou na casa dela é maravilhoso!
            Guarda o léxico brasileiro, como é sabido, muitas palavras quotidianas herdadas de tempos idos, verdadeiros fósseis envoltos de eternidade. Ao chegarmos a um aeroporto, buscamos aí as bagagens depositadas numa esteira rolante e não no tapete; ‘esteira’ é muito mais nosso, próximas das nossas raízes, da palavra latina storea… E, sabe-se, é nos ambientes concretos, rurais que  de ‘esteira’ se fala.
            Tanta vez que há referência às vetustas histórias das mouras e das princesas encantadas. Dormem um sono eterno, que só por milagre junto delas chegará o príncipe capaz de as desencantar. O beijo que há milénios está a tardar!
            E porque será que descobrimos, um dia, quantas histórias estão ligadas entre si, qual invisível cordão umbilical transmissor de Sabedoria?
            «Quando se ama uma flor plantada numa estrela, sabes, é um encanto, à noite, olhar para o céu: todas as estrelas estão floridas!» – explicava o Principezinho à Raposa.
            Um encanto.
            Encantamento.
            Uma outra dimensão, de que, afinal, tão poucas vezes nos apercebemos.
          Agora, foi o encantamento da Lara Bacelar. Um murro no estômago, porque diariamente se esperava um milagre. Os que de perto com ela conviveram poderão aperceber-se, agora, que o milagre foi outro: acutilante, eloquentemente loquaz na branca suavidade do silencioso encantamento.

                                                                                  José d’Encarnação

                        Publicado em Duas Linhas, 27-9.2025:
                        https://duaslinhas.pt/2025/09/o-encantamento/

 

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Eu já deixei

            

             
– «Estava tudo a correr tão bem!»…
A frase – queira-se ou não – mesmo que se não haja dado particular atenção à entoação de quem a proferiu, trazia pequena nódoa de dúvida: «Não há bem que sempre dure!». Aquele pensamento maldoso, que sub-repticiamente se nos inocula no espírito, sempre pronto a dar acordo de si – e nós, que nem sempre temos à mão o antídoto eficaz..
Escreveu-me a Gertrudes:
            «Eu já deixei de rir por não ser capaz e de chorar por terem secado os sacos lacrimais. Agora a minha saúde mental só se aguenta quando estou com os netos ou então oiço concertos no Mezzo!»
Compreende-se. Quase a completar a casa dos 70, dissabores a atropelarem, a cada passo, o movimento bom, é tristonho o seu olhar para as paisagens da vida.
Valem os netos, salpicos de algazarra, inocência, esperança, a beberem da avó, sequiosos, ensinamentos ao longo d’anos amadurecidos…
Vale a beleza da música, capaz de nos transportar para horizontes de sonho, apaziguar tristezas, suscitar doçuras…

Afinal, Gertrudes, vale mesmo a pena viver!

José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 882, 20-08-2025, p. 10.

 

 

 

Palavras na pedra

             No ritual católico da encomendação da alma, recorda-se uma passagem do livro do profeta Job, o personagem bíblico símbolo do sofrimento maior e simultaneamente da resignação eficaz:
“Quem dera as minhas palavras fossem registadas! Escritas em um livro, talhadas com estilete de ferro no chumbo ou gravadas para sempre na pedra! (Job, 19: 23-25).
Do saudoso Padre José da Cunha Duarte nem todas as palavras se gravarão; o nome, sim: em placa que, para sempre, perpetue quanto – não sendo são-brasense de nascimento, mas sim, brilhantemente e com grande honra, são-brasense por adopção – por S. Brás diligentemente teve ocasião de fazer.
Das tradições que empenhadamente quis manter vivas e eficazmente impulsionou, a arte da pedra não foi, decerto, a que menos atenção lhe mereceu.
Imorredoira por natureza, merece ser repetidamente lembrada – ou dela não houvesse testemunhos, até em mui singelas ombreiras de porta.
 

Estão atentos os responsáveis pelo Centro de Artes e Ofícios. E não deixaremos de recordar a actividade, por exemplo, de Jorge Mendonça, que aí apresentou, em Março de 2013, a exposição «Arte em Pedra»; e, entre outras, dez anos depois (Maio de 2023), a exposição «Árvore de Pedra», na Associação da Casa-Museu José Pinto Contreiras, nos Gorjões.
Pedras e árvores integram o nosso património secular. Agrada-nos ver essas bem trabalhadas cantarias de portas. Bem nos agradava ver, igualmente bem tratadas, as árvores do nosso sentir: as velhas alfarrobeiras, as figueiras doces, as amendoeiras carregadas!...  – e quantas delas não há por aí ao abandono?!...
No quadro panorâmico da nossa São Brás, queremos vê-las cada vez mais bem amanhadas. Os herdeiros não se entendem? Há estratagemas a estudar – que essas nossas árvores, de pedra não são, mas carecem também elas da nossa arte e labor!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 346, 20-09-2025, p. 13.