quinta-feira, 4 de junho de 2020

A malva

            – Temos de cortar aquela malva, não achas?
            – Porquê?
          – Está grande de mais, abafa a roseira pequena. E, depois, para que serve? Não nos apetece lavar ninguém com água de malvas nem para curar infecções; já não estamos em maré de atirar inimigo às malvas; não carecemos de lhes secar as folhas para chá, porque Malveira, a povoação a que deram nome, não é aqui!
            – Sim. Vou apará-la, mas não a arranco. Gosto das flores dela, sabes?
            Observei melhor. Quem diria? Cada uma das suas cinco pétalas, de raios violáceos, tinha na ponta uma chanfradura! À vista normal, apressada, tal seria resultado – diríamos – de roedela de bicho daninho, lagarta nociva. Não era! Requinte estético duma Natureza a surpreender-nos sem cessar!
            E o gracioso recorte das folhas palmadas? Sim, lembro-me de ter aprendido em Botânica que folhas assim, em jeito de palma da mão e com cinco dedos eram palmadas e palminérveas.
            Só o vírus e a quietude por ele proporcionada, a exigir agendamento de ritmo me permitiram, parar, sem pressa, na admiração de singela malva, doutra forma despercebida por completo. As flores feneceriam sem que eu nelas reparasse; as folhas – que deslumbrante desenho o das nervuras!... – acabariam por perder este verde forte, amareleceriam, tombariam murchas e finar-se-iam, incógnitas, no meio de bem desagradável lixo de jardim.
            Podem estar descansadas, amigas! Aí completarão o ciclo de vida. “Resto inorgânico indiferenciado”, sim; mas, se lhes for possível ter consciência, poderão ufanar-se perante as demais:
            – Sabes? Um dia, o senhor do jardim onde eu vivi, reparou em mim, achou-me bonita e até fez uma crónica a chamar a atenção para o invulgar recorte das minhas pétalas, imagina!...
            Sinto-me de missão cumprida!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 777, 01-06-2020, p. 13.

5 comentários:

  1. "O Senhor do Jardim"...Que bonito apontamento sobre a beleza das malvas, porque o retiro forçado a que chamaram confinamento, permitiu a contemplação mais cuidada! Também eu diria, se de cabeça baixa a mirar "a chanfradura das pétalas" que alguma lagarta macho, apaixonada pela macieza raiada, lhes daria uns beijos mais acesos e profundos. Mas só um observador-poeta perceberia que era coincidência a mais aquele selo com tão perfeita repartição. E é bem de ver que, se as plantas falarem quando já "resto inorgânico"a servir de alimento a outras plantas novas, não poderão deixar de gabar-se da avaliação meticulosa do "Senhor do Jardim" que lhes admirou a beleza da juventude. Lindo texto. Foi uma delícia ler.

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  2. Tomei a liberdade de recortar e transcrever aqui, com gratidão, os simpáticos comentários exarados na página do FB:

    Maria de Jesus Brito
    Também cá tivemos uma no nosso jardim, este ano. Espontaneamente nasceu e espontaneamente cresceu. Deixámo-la ficar até que as flores e folhas amareleceram e secaram. Só depois a cortámos. Saudosismo de uma época em que esta planta curava quase tudo, antes de recorrermos ao antibiótico por tudo e por nada. Quem sabe gratidão!...

    Eísio Aveiro
    Hoje é dia mundial do ambiente, dedicado à biodiversidade, eu quando mondo as plantas do meu quintal, as que cultivei com fins alimentares, deixo ficar algumas "selvagens" que eram e ainda são, pelo menos para mim plantas medicinais, malva, funcho, cardo mariano, dente de leão..., por isso acho bem: deixai a malva crescer e ouvi a chuva a cair!
    E aquele abraço para o Professor

    Helena Ventura Pereira
    Fui ler...e muito aprendi com mais esta lição. Nada saber das pétalas ou das folhas das plantas que ladeiam os caminhos que percorremos, é triste!... Que lindo pedacinho de prosa!

    Julia Franco
    Professor,
    o confinamento ensina e a aprendizagem depende, certamente, do observador.
    Obrigada por este belo texto!
    Um sereno fim de semana, como convém!

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  3. Maria Amélia Moreira Feio
    12 de junho às 12:41

    Eu gosto imenso de fazer recolha de ervas aromáticas e costumo guardar a malva para as infecções urinárias, assim como o alecrim, as sementes de catacuzes e as de carrasquinhas para a diarreia e faz bem, assim como outras para chás. É bonito ter conhecimento sobre elas. Eu não as conheço todas, mas algumas. Em Alvito, há muitas e, como moro cá, aproveito. Na minha terra ainda há mais e eu, quando vou a Mértola, gosto de ir a elas. A minha avó dizia que se deviam colher até quinta-feira de Ascensão.

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  4. Que maravilha! Que feliz deve estar a malva! E eu também, por este momento tão bonito! Muito obrigada.

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