terça-feira, 16 de junho de 2020

Lua Cheia!

            Antes de fechar a porta da rua, não resisti e chamei a Ana:
            – Anda ver como está bonita a lua cheia esta noite!
            Viu, não ligou grande importância; eu quedei-me mais uns largos segundos. Não fui apenas eu que mudei com o forte escaldão que o vírus nos está a dar, foi também o firmamento, que mais se libertou de poluições e, assim, melhor nos permite ver este luar, que, contava minha avó, atraía lobisomens e fazia almariar os humanos. E o homem que levava eterno molho de silvas às costas, por não ter guardado o domingo, dia do Senhor. Eu sabia agora serem sombras das montanhas lunares; mas, em miúdo, acabava por ter pena do condenado.
            E esta atenção maior ao que nos rodeia é jeito que ora se pega. Meu amigo Zé Rocha deu em mostrar, no Facebook, recantos do seu jardim. «Adoro as flores do campo», escreveu-me ele, «apanho as sementes e lanço-as no meu jardim». A muitos quilómetros daqui, em Saragoça, Manolo, septuagenário como nós, também outro dia se deixou fotografar, de barba patriarcal, junto de mui viçoso canteiro de… alfaces!...
            Para que nos havia de dar!...
            Ia eu nestes pensamentos quando, antes de aconchegar a cabeça na almofada, peguei no livro de cabeceira «Parar», de David Kundtz (Sinais de Fogo, Lisboa, 2004). E li:
            «Os cidadãos da viragem do século não têm tempo para parar e cheirar as rosas» (p. 49).
            «Distraídos, perdemos momentos importantes. Passam por nós e nem sequer damos por eles: o telefonema de um velho amigo, a visão momentânea de uma lua cheia através das árvores sombrias, a observação ou pergunta de uma criança, a luz e a cor de um fim de dia outonal – tudo nos passa ao lado, sem intercepção, sem registo, sem utilização, e finalmente perdido. Nem sequer reparamos que não reparámos» (p. 137).
            Parece-me que estou a compreender porque é que, neste últimos tempos, há tanta fotografia de pôr-do-sol e tanto novo olhar para as flores e porque é que eu parei diante do bem vistoso e brilhante plenilúnio… Consciencializamo-nos de que, afinal, vale a pena saborear o momento, não reclamar contra a aparente lentidão do computador quando não obedece de imediato ao comando que lhe demos… Segundos que, pouco a pouco, vão deixar de ser eternidades... 

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 778, 15-06-2020, p. 12.


12 comentários:

  1. Que haja finalmente lugar para o quintal!

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  2. De: Teresa Meira
    quarta-feira, 17 de Junho de 2020 10:32
    Adorei a sensibilidade do texto.

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  3. De: Julia Fernandes
    quarta-feira, 17 de Junho de 2020 10:28
    Gostei muito da crónica. Que palavra tão bonita foste desencantar, almariar.

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  4. Muito bem, ilustre amigo e patrício.
    Continua com essa inspiração e ainda vais mais longe!
    Um abraço!
    Victor Brito

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  5. A escrita tranquila e sobre o que afinal é importante na vida é sempre bem-vinda! Abraço -

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  6. Que lindo texto...De novo as pequenas GRANDES coisas da vida: olhar o céu e a face redonda da lua, o canteiro de alfaces, as flores do campo, pedaços de beleza carecidos de registo. "Nem sequer reparamos que não reparámos" e talvez por isso nos lamentemos mais do que devíamos.
    E já agora, para terminar a minha impressão sobre a leitura, muito aquém da emoção que me causou prosa tão fluída, (qual) o nome da rosa?

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  7. Bina Rianço
    17 de junho às 13:59

    Lindo texto que nos faz pensar e reflectir. […]
    Afinal, há Luar e tantas coisas lindas para contemplar!

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  8. Maria Rosário Moreira
    17 de junho às 16:04

    Passámos a dar muito valor às coisas que nos passavam ao lado. Maravilhoso o seu texto. Amei. […]

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  9. Norma Musco Mendes
    17 de junho às 18:23

    Salve o confinamento!!! Muitos despertaram para a importância da natureza.

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  10. Victor Martins
    17 de junho às 22:57

    Muito bonito texto, como bonita rosa que o ilustra! É certo que, apesar de ter dado sempre importância, apreciando estes preciosos bens da Natureza, acho que este confinamento aguçou o nosso olhar e ver de outra forma! Obrigada por mais um texto tão delicioso.

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    1. Peço desculpa pela ousadia de aqui ter inserido agora estes comentários. Fi-lo pelo que eles representam não apenas da Amizade dos seus autores (bem hajam!), mas também por este novo olhar para o que nos rodeia estar, de facto, a tornar mais agradável o nosso viver. O benefício que o vírus trouxe!

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  11. Mais um texto lindo escrito por um Homem Especial que amo muito. Beijos aos 2 nos vossos lindos corações 😘😘

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