quinta-feira, 6 de maio de 2021

O próximo… um inimigo?

            Acordei hoje com uma pergunta bem estranha: «É o próximo um meu inimigo?».
           A palavra soa-me desde menino: «Amar o próximo como a si mesmo». O primeiro mandamento. Próximo, aprendi logo, é o membro da família, o vizinho, aquele com que te cruzas na rua, o que passa por ti orgulhoso do seu descapotável e o idoso que comprou um daqueles carros com motor de motociclo…
            Já não te cruzas. A preocupação de quem vem lá, mesmo que tenhas máscara, é passar para a outra berma, não vás infectá-lo com o vírus.
            E revivi o que fora o dia da passada semana, em que – sabe-se lá porquê, devido quiçá à minha costela marota do Barrocal algarvio – acordei doutra forma, com uma vontade enorme de ser próximo. Uma vontade irresistível, que vinha de dentro, das minhas vísceras septuagenárias. Instintivamente, talvez.
            Assim, na (já rotineira) ida para o hospital, cruzei-me com uma jovem. Levava uma criança ao peito, empurrava o carrinho com outra:
            – Grande carrego, vizinha, grande carrego!
            – É verdade. Bom dia!
            No murete antes da entrada, a menina, aí duns três anos, dava miminhos à mãe, que lhe ajeitava o casaquinho.
            – Que narigada boa, hein?
            Riram-se. Eu sorri também.
            À entrada, a auxiliar apontou-me o termómetro à testa, séria, nas perguntas regulamentares: «Febre? Tosse? Má disposição?». Respondi maquinalmente: «Tudo bem». «E o que vem fazer?». «Fisioterapia e… ver uns olhos bonitos!». Era verdade. A senhora sorriu, agradeceu, sorrimos ambos. Desinfectei as mãos.
            Na sala de espera, estava a ser difícil pôr a máscara na pequenita, ansiosa porque ia ao senhor doutor dentista. «Que máscara bonita a tua!», disse-lhe eu. A mãe sorriu, a menina encolheu-se num requebro doce perante a frase inesperada. A máscara foi ao lugar num ápice.
            Mais adiante, atmosfera pesada, antecâmara para os tratamentos. O senhor, de canadianas sobre as pernas, mirava, pensativo, o telemóvel, rugas na testa, ânsia no rosto, a perna esticada.
            – Olá, bom dia!
            Levantou os olhos admirados, ainda ninguém mais lhe dissera «bom dia!»; num quase sorriso, respondeu «bom dia!»…

José d’Encarnação 

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 798, 01-05-2021, p. 11.

 

2 comentários:

  1. Gestos tão simples e que fazem tanta diferença...

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  2. O que acho delicioso neste texto, é que ele traduz a personalidade do autor (com "uma costela marota do Barrocal algarvio"?). Ele tem sempre vontade de ser próximo, como se gostasse de lançar um desafiozinho aos antipáticos que encontra, ou melhor, aos menos risonhos e desconfiados. E a sua maneira de ser prova isso mesmo, que não há antipáticos, há distraídos do melhor da vida, ou desiludidos por ninguém dar por eles. Uma lição de vida.

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