quinta-feira, 13 de maio de 2021

Que queriam os bracarenses da Beja romana?


Texto José d’Encarnação, arqueólogo

Ilustração Zé Luís Madeira

Não há fumo sem fogo e se eles, aí pelos finais do século II, se organizaram em sodalício, é porque alguma intenção teriam! E qual seria? Secreta ou à vista de todos? Essa é a questão que se levanta depois de lermos uma das inscrições romanas mais enigmáticas da Beja romana. Enigmática porque lhe falta uma das letras mais significativas e porque o tempo se encarregou de delir a superfície epigrafada, impedindo-nos, pois, de ter certezas.

Essa inscrição foi gravada numa placa que está no Museu Regional Rainha D. Leonor, com o n.° de inventário B-36, incrustada numa das paredes do claustro. De mármore cinzento de Trigaches, mede 29 cm de altura, 38 de largura e oito de espessura. A sua existência só foi revelada, quanto se sabe, por Abel Viana, quando procedeu à elaboração do catálogo da Secção Lapidar do Museu, publicado logo nos números I e II do seu “O Arquivo de Beja”.

Dada a importância do espólio aí estudado, mandou fazer separata com o título “Museu Regional de Beja – Secção Lapidar”, vinda a lume em 1946. É na página 11 desse livrinho que vem reproduzido o que o sábio antes escrevera, tendo dado à inscrição o n.º 8. O espólio lapidar do museu foi crescendo, haveria, por outro lado, algumas correções a fazer ao que fora dado a conhecer e, por isso, Abel Viana voltou ao tema no n.º IV da revista.

Tem uma razão este esmiuçamento de publicações. É que, de 1944 a 1947, vão três anos e Abel Viana não terá reparado que nada dissera acerca das circunstâncias do achado dessa inscrição. Quiçá também se não tenha apercebido logo do seu elevado alcance histórico. A placa dera entrada no museu, integrada naturalmente no abundante número de achados que, na altura, se faziam no perímetro urbano da cidade e nada mais haveria a acrescentar. Por conseguinte, uma primeira conclusão se poderá retirar desta ausência informativa: a placa foi recolhida na cidade, porque estamos certos de que, vinda doutro local, Abel Viana não deixaria de o referir.

UMA INSCRIÇÃO… MISTERIOSA!

Mas, afinal, que é que essa epígrafe tem de especial?

Para já, um motivo de arrelia: “tem quebrados os ângulos superior esquerdo e inferior direito”, como Abel Viana anotou. E, embora apresente a leitura que logrou fazer e comente algumas das suas especificidades, comenta: “As três últimas linhas têm falta de muitas letras, devido aos tratos sofridos pela lápide”. E por aqui se fica.

Acontece, porém, que há nesse texto em latim – no que se consegue apurar bem – algumas expressões fora do comum: ‘Deo invicto, sodalicium Bracarorum, sua impensa fecerunt e magister’.

‘Deo invicto’ significa que a inscrição foi dedicada a um “deus invencível”. A sua identificação mais precisa estaria no tal pedaço de lápide que desapareceu. No tempo dos romanos, “invencíveis” costumavam designar-se dois deuses, que – aqui para nós – são praticamente equivalentes nas suas funções e características, de tal modo que, por vezes, aparecem identificados: o Sol e Mitra! Divindades muito veneradas sobretudo na parte oriental do Império e cujo culto se revestia de um certo secretismo. Nem todos poderiam participar nas cerimónias, só depois de terem sido aceites pela comunidade dos crentes... Ambos com sua luz resplandecente iluminariam os seus fiéis em todas as circunstâncias da vida!

Portanto, de acordo com os especialistas, a rotura teria levado o M de Mitra ou o S de Sol. ‘Sodalicium Bracarorum’, por seu turno, tem ainda mais que se lhe diga! O sodalício era o que poderíamos designar de “corporação”, por comparação com a tonalidade económica que o termo detém em português e com a função que também tinha na época romana; se preferíssemos “confraria”, a tónica seria acentuadamente religiosa e também não andaríamos longe da verdade, porque amiúde os ‘sodales’ (assim se designavam os seus membros) se constituíam em grupo em torno da devoção específica a determinada divindade. Aqui, seria um “deus invicto”!

A palavra ‘Bracarorum’ significa “dos Brácaros”, ou seja, dos naturais da cidade de Bracara Augusta, a atual Braga. Hoje, preferiríamos chamar-lhes bracarenses. E não deixará de ser curioso verificar, a esse propósito, que se conhece desde pelo menos o século XVIII uma inscrição dessa cidade, achada “junto ao monte de Penas” (a colina de Maximinos, fertilíssima em achados romanos),em que se fala de um “sodalício dos urbanos”, isto é, dos que habitavam a cidade, o que prova que o termo era aí usado comummente.

Sua ‘impensa fecerunt’ quer dizer “fizeram a expensas suas”. O facto de a expressão vir por extenso é sintoma de que faziam gala em que tal constasse sem dúvidas. Por outro lado, isso indicava que era um grupo de posses. ‘Magister’ significa, neste caso, “presidente”. O sodalício estava, pois, organizado como devia ser e consta no texto que foi o presidente, um tal Méssio Artemidoro que, para que tudo constasse, diligenciou no sentido de ser gravada a inscrição.

E QUE FARIAM AQUI OS DE BRAGA?

A pergunta tem toda a razão de ser, porque não é sem mais nem menos que, numa cidade estranha, com a categoria de capital administrativa de todo o Sul da Lusitânia romana, um grupo de forasteiros se organiza. E lembramo-nos, os de hoje, das Casas do Benfica ou do Sporting, ou, em Lisboa, das Casas do Alentejo ou do Algarve, com a sua organização e os seus objetivos claramente de defesa, estas últimas, dos interesses regionais. Será que em Pax Iulia havia interesses bracarenses a defender? E que motivo teria levado os naturais de Braga a instalarem-se na Beja romana?

Importa, antes de responder à pergunta, explicar que, entre as hipóteses de interpretação do facto concreto que poderia ter levado à gravação da inscrição, se aventa a de se tratar da inauguração da sua sede, um ‘studium’, equivalente à nossa palavra “estúdio”, como local de reunião e de reflexão. E nesse estúdio se teria colocado uma ‘crátera’, vaso que se usava nas libações em honra das divindades, como, hoje, há o cálice e também, em cerimónias mais solenes, o turíbulo para o incenso.

Por conseguinte, função religiosa, de culto, teria de haver; mas… seria a única? Não poderia funcionar tal sodalício como lóbi? Creio bem que sim, sobretudo tendo em conta a estratégica posição de Pax Iulia, capital político-administrativa, em relação aos campos derredor e no estreito relacionamento com o Norte de África romano.

Dir-se-á: elucubrações! Talvez não. Não temos no catálogo das inscrições romanas de Beja aquela em que Gaio Blóssio Saturnino, cidadão a que os pacenses deram o estatuto de “residente” (‘incola’, em latim), o equivalente ao nosso “cidadão honorário”, sendo ele Napolitanus Afer, isto é, natural da Colonia Iulia Neapolis, cidade que ficava perto da atual Nabeul, na Tunísia?

Não se falará da riqueza agrícola, dos férteis campos – que já o seriam há dois mil anos. Acentuar-se-á, de modo especial, o facto de a cidade ficar muito perto de Vipasca, o couto mineiro de Aljustrel, explorado pelos romanos. Aliás, não será despropositado referir que uma inscrição romana achada em Garvão, no concelho de Ourique, constitui o epitáfio de Ladrono, cujos familiares não hesitaram em aí mencionar que ele era ‘Bracarus’! Daí se poderá induzir que essa comunidade fazia questão em se manifestar para, naturalmente, melhor se evidenciar entre os demais.

Fica assim justificado o elevado interesse histórico que singela placa, meio delida pelo tempo, detém para o estudo das migrações de outrora. Já em 1970, o historiador Georges Fabre, ao estudar o tecido urbano do Noroeste peninsular; sublinhava: “Recordemos também que estes migrantes não se movimentam num meio hostil. Podem, desde logo, estabelecer relações com compatriotas já instalados: existem verdadeiros agrupamentos organizados, como em Pax Iulia, onde se faz menção dum ‘sodalicium Bracarorum’, uma confraria, uma tertúlia que devia permitir às gentes originárias de Bracara que fossem aconselhadas e defendessem, se fosse caso disso, os seus interesses”.

             Publicado em Diário do Alentejo [Beja], 04 de maio 2021.

 

6 comentários:

  1. Realmente este Alentejo desde os primórdios, foi acolhimento, de gentes de todo o lado.
    Por isso somos uma raça bem agarrada a tradições ancestrais.

    ResponderEliminar
  2. Um texto muito interessante para lembrar que as sociedades humanas são migratórias e sempre tendem a criar grupos solidários sobre interesses comuns,em territórios, tanto favoráveis, como adversos.
    A maior diferença actual é este meio de comunicar aqui e agora, para todo o mundo!

    ResponderEliminar
  3. Alice Marques
    Enviada: 13 de maio de 2021 14:31

    Espantoso. Respiras história!

    ResponderEliminar
  4. Obrigado pela partilha. Cuidado com as comparações anacrónicas. Aqui fala-se de migrações internas...

    ResponderEliminar