quinta-feira, 6 de maio de 2021

Um alqueire de cevada – para quê?

            A João Roiz de Castelo Branco, regressado do Norte de África, onde pelejara, atribuiu el-rei a pensão de 1300 reais e um alqueire de cevada por dia. Esse alqueire foi, entre outros temas, abordado por António Salvado, na carta aberta que escreveu a esse incomparável poeta do século XVI: para que quereria ele a cevada? 
      
            Creio poder jurar que não haverá ninguém minimamente apreciador da literatura portuguesa que não conheça e, porventura, não tenha aprendido de cor o que é, para mim (e penso que para muitos outros) o mais sentido poema lírico alguma vez vertido na língua de Camões: «Senhora, partem tão tristes / meus olhos por vós, mee bem, / que nunca tão tristes vistes / Outros nenhuns por ninguém». A enorme tristeza de quem abala, na certeza de que não voltará a encontrar por perto os olhos da sua amada…
          Quis António Salvado voltar a debruçar-se sobre a vida e a obra deste poeta albicastrense. Escreveu-lhe uma carta aberta e reeditou, amplamente comentada, a escassa obra conhecida de João Roiz Trata-se do livrinho Leituras XIII, editado, em 2020, pela Universidade Sénior Albicastrense (48 páginas).

            A 2ª parte do volume, a referida reedição, merece o maior encómio, na medida em que as mais de 80 notas de rodapé ajudam a compreender cabalmente não apenas a citada cantiga, mas a resposta em verso dada por João Roiz, na sua qualidade de contador da Guarda, ao vedor da moeda de Lisboa, António Pacheco, assim como as trovas enviadas a Antão da Fonseca, que estava em Alcácer-Ceguer. António Salvado recuperou também, traduzindo-os do castelhano,  o vilancete e respectiva glosa, dirigidos por um fictício João Colhado ao «negligente pastor», que, por andar perdido de amores, descuidara o seu labor: «Que o amor me tem roubado / a força com seu poder, / tem-me o repouso tirado / e tem-me todo afastado / de tudo o que dá prazer».
Louve-se a beleza da tradução, aplauda-se a reedição da obra completa, mas regozijo haja também por, assim neste jeito de despretensiosa missiva, António Salvado ter aproveitado para comentar e realçar alguns dos aspectos maiores da vida e obra de João Roiz de Castelo Branco, no pouco que dele se conhece.
E é aí que se insere a pergunta: por que carga de água se estipulou como tença para João Roiz um alqueire de cevada? «Eras dono de alguma cavalgadura que alimentarias diariamente?», pergunta-lhe António Salvado, que, de resto, se interroga também acerca da razão por que ao poeta fora atribuída uma pensão: «Em virtude das tuas acções como militar no Norte de África?». Talvez.
Perpassa, afinal, por toda a obra de Joaão Roiz uma crítica bem clara ao Portugal do seu tempo – e esse aspecto, quiçá, tenha estado obnubilado pela excepcional beleza do seu poema «Senhora, partem tão tristes…». Sim, ele partiu – mas para onde? De Lisboa para a Beira, fica-se a saber. E é todo o encanto dessa sua nova vida que surge, por exemplo, na carta ao amigo Pacheco, em contraste com o ambiente lisboeta. ¿Um novo «Velho do Restelo» plasmado nestes versos «Armadas idas d’além, / já sabeis como se fazem, / quantos cativos lá jazem, / quantos lá vão que não vêm!»?
E porque não?
Vivera mal em Lisboa, as mantas cheias de pulgas («onde era a pulga tanta / quantas sabeis que matei»; na província, «gastamos nossas vidas em capas, gibões e saias…».
O ‘regresso à terra’ constitui, como se sabe, tema recorrente desde os tempos dos poetas clássicos Horácio e Virgílio, no contraste entre o fátuo frenesim urbano e o sereno bucolismo campestre. Não deixa, porém, de vir a propósito, a meu ver, a comparação entre a atitude de João Roiz de Castelo Branco e a que tivera, 400 anos antes, Ibne Mucana, o poeta árabe de Alcabideche:

«Deixei os reis cobertos com os seus mantos, deixei de ir em seus cortejos. Converti-me, em Alcabideche, em colhedor de espinhos com uma foice guarnecida e afiada. E se me perguntam: Gostas? Respondo-lhes: “O amor à liberdade faz parte do coração nobre”»

Ibne Mucana andara a versejar pelas cortes dos reinos de taifas; cansou-se e regressou à terra natal. Assim, João Roiz.

Desta sorte, em Leituras XIII – mais uma vez, o eco reflexivo de uma leitura feita (e que leitura essa foi!) – Antonio Salvado nos presenteia com uma reflexão. A dele consubstanciada na de João Roiz. Ambos albicastrenses que de longe vêem Lisboa…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Gazeta do Interior [Castelo Branco] nº 1689, 05-05-2021, p. 6.

 

5 comentários:

  1. Amigo Zé muito obrigada por me enviares estes teus comentários ao trabalho de Antonio Salvado. Dá me muito prazer apreciar a qualidade do trabalho e da escrita de ambos.

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  2. Teve a Doutora Margarida Sobral Neto a gentileza - que muito agradeço - de nos explicar para que se queria a cevada. Assim:
    «Trata-se de uma recompensa pelos serviços prestados ao reino nas "conquistas" que podia incluir um quantitativo monetário e em géneros.
    Neste caso cevada para alimentar os animais que utilizaria como transporte, mas também para levar para a guerra caso voltasse a ser necessário.
    Os nobres, por norma, iam à guerra a expensas próprias, esperando uma recompensa régia.»

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  3. Mais um belíssimo texto com a informação deste trabalho de pesquisa da obra de João Roiz de Castelo Branco, feita por António Salvado. A ideia de lhe enviar uma carta é bem original, presta-se à revelação de aspectos de vida pessoal que sempre interessam aos leitores da obra. E dá-la a conhecer, também, através de uma tradução do castelhano amplamente comentada, ainda mais apelativo se torna. O "Senhora partem tão tristes..." de João Roiz de Castelo Branco chegou a ser musicado e só podia resultar numa composição de beleza ímpar. Já agora, como posso obter esta edição?

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  4. E assim, mais uma vez "reencontrei um criador- João Roiz de castelo Branco, pelas notícias que dele nos dá o nosso amigo José d Encarnação. Bem haja. Júlia Nery

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  5. Já tive ocasião de agradecer à Doutora Margarida Neto a informação acerca da 'função' do alqueire de cevada, alqueire que ainda é em certas regiões do Algarve, como me recordou a Dra. Madalena, a medida comum. Agradeço a Madhelena a assiduidade com que comenta o que escrevo, a sublinhar sempre o que se lhe afigura mais importante. Foi um privilégio 'ver' aqui a Amiga Júlia Néry: o João Roiz é, na verdade, naquele seu inspirado poema, o supra-sumo da tristeza duma separação amorosa - «que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém»!

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