terça-feira, 21 de agosto de 2018

Aquele burrico emociona-me!

             Impressionante – mas dizem-me que é assim! – como, entrados na década dos 70, revivemos e até estão mais vívidas na ideia as cenas da nossa infância. Explica-se, hoje, que o «disco» ainda estava virgem e nele profundamente se gravava tudo o que nos acontecia, de bom e de mau.
            Assim, estes dias de caloraça – como então se dizia – recordaram-me as férias em Agosto no Corotelo. Minha avó, após o almoço, achava (e bem!) que eu devia ir dormir a sesta no sobrado. Eu ia. A casa estava na penumbra em que as janelas fechadas, por mor do Sol, a envolviam. Fazia fresco e eu adormecia ao som de uns barulhinhos familiares, quais máquinas de costura. Uns bichinhos com que nunca travei conhecimento, mas que, ao que parece, estavam nas canas do telhado. Som a espaços que acabava por me adormecer, sem que eu tivesse medo que me caíssem em cima…
            Aconteceu agora que, de novo, me emocionei. Uma vizinha, amiga antiga de meus pais, são-brasense como nós, tinha uns quadros a estragarem-se numa arrecadação do quintal. «Coisas do Algarve», disse-me, «de que vai gostar de certeza e a mim para nada servem». Aceitei, quando mos mostrou. Seis desenhos de Júlio Amaro, a retratarem instantâneos da vida algarvia, mormente da zona por onde ele se passeou: a Praia da Luz, Alte, a igreja de Lagos, as chatas num repouso da faina… De todos, porém, mostrados naquela singeleza de traço inconfundível e esplêndido, o que mais me emociona é o da velhota, trajada como minha avó se vestia, de chapéu na cabeça e xaile pelas costas, a levar o burrico à fonte. Duas infusas grandes – quais ânforas romanas – uma de cada lado das cangalhas. E lá ia. Adivinho-lhe o passo lento. E todos os dias, ao subir a escada, paro diante deles, em reverente saudação ao Passado!
 
                                                               José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 261, 20-08-2018, p. 13.

2 comentários:

  1. Vítor Barros
    Crónica já lida no nosso Noticias. Muito bem descrito e a fazer-me lembrar as sestas com o meu avô num sobrado parecido e numa hora idêntica. Os mesmos rumores no telhado e o som das carepas de milho no colchão chegaram novamente hoje até mim. Abraço agradecido.

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    1. Bem haja pelo eco, patrício e amigo Vítor! Eu no Cerrito e vossemecê na Fonte da Murta!... Abraço!

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