quinta-feira, 1 de julho de 2021

Inscrição gravada em pedra no interior da igreja de Sever – Cativo seja quem a violar!

            Há pedras com letras que toda a gente vê e que, por nunca ninguém ter chamado a atenção para elas, facilmente passam despercebidas. Isso acontece com um letreiro na igreja matriz de Sever. 
 
Existe em Sever, freguesia de Sever, concelho de Moimenta da Beira, na igreja de Nossa Senhora da Conceição (padroeira da freguesia), inserida no interior, na parede do lado norte do corpo que serve parcialmente de base ao campanário, uma dessas pedras com letras.
Está em ponto alto, do lado esquerdo de um portal de arco de volta perfeita, de quem olha dentro da igreja. Quase se confunde com as restantes pedras da parede, não fosse o seu contorno.
Cinzelada numa placa aproximadamente quadrangular, de granito de grão médio, amarelo claro, com moldura ornamentada, a inscrição apenas terá sido referida, até ao momento, pelo padre António Bento da Guia, em As vinte freguesias de Moimenta da Beira (Câmara Municipal de Moimenta, 3ª ed., 2001, p. 194), nestes termos:
«Em frente da igreja há uma galilé que dá passagem para o campanário e para o cemitério e nela existe uma inscrição gravadas numa das pedras tão antiga que não conseguimos lê-la».
Campo epigráfico rebaixado.
Dimensões da placa: 58 cm de altura x 53 cm de largura. A altura das letras, que  revelam algum desgaste, varia entre os 3,5 e os 4,5 cm.  
            Escrito em latim o texto diz o seguinte:

                                                                 NON

                                                      EST HIC ALIVD

                      NISI DOMVS DEI

                      & PORTA CO

                      ELI OI VINTIS

                      QUI PETIT

           A primeira parte da frase  - Non est hic aliud nisi domus Dei et porta coeli - é assaz conhecida, por se mencionar, por exemplo, na antífona de vésperas da dedicação de uma igreja. Foi recortada de uma passagem do livro do Génesis (28, 17) e encontra-se, por isso, em variadíssimas igrejas: encima uma janela na matriz do Bonfim, no Porto; está no vão central da facada principal da matriz de Valongo; pintaram-na no arco cruzeiro da matriz de Guisande (S. Maria da Feira)…

Em português significa:

«Nada mais existe aqui senão a casa de Deus e a porta do céu».

Facilmente se compreende que é estranha a formulação, só compreensível se formos ao contexto em que foi proferida.

Jacob, a caminho de Harân, «chegou a determinado sítio e resolveu passar ali a noite, porque o sol já se tinha posto. Serviu-se de uma das pedras do lugar como travesseiro e deitou-se. Teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava o céu; e ao longo dessa escada subiam e desciam anjos de Deus. Por cima dela estava o Senhor, que lhe disse: «Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. Esta terra, na qual te deitaste, dar-ta-ei assim como à tua posteridade. […] «Despertando do sonho, Jacob exclamou: «O Senhor está realmente neste lugar, e eu não o sabia!». Atemorizado, acrescentou: “Que terrível é este lugar! Aqui é a casa de Deus. aqui é porta do céu». No dia seguinte, Jacob agarrou na pedra que lhe servira de travesseiro, e, depois de a erguer como um padrão, derramou óleo sobre ela» ( 28, 10-18).
             Retirou-se, pois, essa primeira parte da frase «O quam metuendus est locus iste», e adaptou-se o resto para a cerimónia da dedicação de uma igreja, cerimónia que se reveste do maior significado na religião católica, por significar a consagração oficial de um lugar ao culto. Acrescente-se, porém, que, tendo consultado o cerimonial previsto para Portugal para dedicação duma igreja, nada encontrámos que pudesse ter ligação directa com a frase.
Em todo o caso, não é tanto a frase canónica que ora particularmente nos interessa, mas sim o que vem a seguir, aparentemente até escrito por outra mão. Ou seja: há a frase mais ou menos estereotipada, como vimos; contudo, alguém decidiu acrescentar algo mais, o que se conclui pelo uso do U em vez de V (como era comum nas inscrições em Latim).
E, na verdade, se a primeira parte da inscrição obedece, porque copiada, às habituais regras das epígrafes, esse ‘acrescento’ reveste-se de marcantes características populares:
– A interjeição Oi só a encontrámos num dicionário (de Francisco Torrinha), com o significado de ah! oh! ai!, a designar dor;
vintis (está bem visível o nexo NT) não tem, assim grafado, correspondente em latim.
Ocorre a semelhança com a expressão Vae Victis! proferida pelo general gaulês Breno, ao pôr a espada num dos pratos da balança que determinava o peso do resgate a pagar pelos Romanos após a derrota. Mas, aqui, há um N, o que nos leva a supor que – embora com essa frase no ouvido – se tenha pensado em vinctus¸ cativo, preso, particípio passado do verbo latino vincire, «ainda que não haja concordância alguma com o que vem a seguir, que está no singular, qui petit, «que acomete». Petit é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo «petere», ‘atirar-se contra’, atacar’, ‘assaltar’…
Por consequência, uma frase, esta última, em latim popular, que verbera e, de certo modo, lança o impropério sobre quem ousar violar o carácter sagrado do templo. Como quem diz «Cativo seja quem viole!» essa sacralidade! Ai dele! Que a ignomínia do Senhor o tornará seu prisioneiro!

Em conclusão:

Há pedras escritas que, ignoradas desde há muito, acabam por nos revelar, um dia, mensagens que jamais esperaríamos e que bem mostram como a cultura bíblica se deixou penetrar pela cultura clássica, numa simbiose tanto mais notável quanto se verifica numa singela igreja do interior português.
A nós cumpriu o dever de a dar a conhecer, a fim de se colherem outros testemunhos que melhor venham esclarecer o que ora aqui se mostra.


                                    José d’Encarnação                           

                                    José Carlos Santos

Publicado em Terras do Demo (Moimenta da Beira) nº 465 [Ano XXV], 21-06-2021, p. 6.

 

 

3 comentários:

  1. Bom, eu gostei tanto do texto que, se pudesse, ia já inscrever-me num curso de Epigrafia. Que maravilha vermos decifrar, por quem sabe, e podermos fazer o mesmo, aprendendo, o pensamento, ou a intenção, de quem mandou inscrever aqueles caracteres na pedra. Muito grata por mais este belíssimo texto. E outra grande lição a tirar: não basta olhar de fugida, é preciso ver com atenção.

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  2. José Manuel Varela Pires
    A meio do nada, quando julgamos o nada inexistente, a meio desta viagem absoluta do conhecimento, cada pedra tem o seu próprio sentido de existir e, quiçá, o seu significado esquecido, sua mensagem, a sua corporeidade dirigida a quem a encontra e a considera. Felicito-o José da Encarnação pela procura, pela pesquisa persistente, por trazer à luz o que ignoto estava, talvez não em grande maioria, todavia no principal! Tudo o que se escreve é inúmeras vezes reescrito, para sobre ruínas se enunciar com a luz e o brilho da idade presente. Abraço!

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