quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O TEC festeja 56 anos com uma peça violenta

          Não resisti e fotografei o estado de lastimável decrepitude total do Teatro Rosa Damasceno, em Santarém. Uma punhalada. Aquelas janelas sem vidros, aquela arquitectura típica do estilo de Amílcar Silva Pinto, «modernismo radical» se lhe chamou, com muitos apontamentos da arte ‘deco’ próprios dos anos 30. Tudo em irreparável degradação. Como foi possível? E, por oposição, regozijei-me – que se me perdoe… – com os 56 anos, ora cumpridos, do Teatro Experimental de Cascais e com a vida do nosso Teatro Gil Vicente.

Grito doloroso servido em baixela

            Difícil resumir as emoções, os sentimentos, as reacções por que o espectador passa ao ver esta Beatrix Cenci, na versão da Doutora Graça P. Corrêa, que também assina a encenação e a dramaturgia.
            A jovem viveu no século XVI e permanece uma lenda, símbolo da resistência, até à morte, contra a tirania, consubstanciada na figura hedionda, cruel e desumana do pai, conde de linhagem.
            Chamo ao espectáculo «grito doloroso servido em baixela», por ser lancinante, difícil de aceitar, mas, ao mesmo tempo, a oportunidade para toda uma equipa, esmerando-se ao limite, mesmo arrostando com a apregoada – mas sentida! – ‘maldição’ de Beatrix, nos brindar com ele servido em baixela.
Do espectáculo em si se falará noutra altura. Quedemo-nos, por agora, no texto e no antídoto que ele pretende inocular. Sim, inocular. Era bom que inoculasse. Qual potente vacina contra todos os covides que nos ameaçam e perturbam.

Grito actual inoportuno?

            Na pasta de textos vêm, além dos currículos dos elementos da equipa artística, da equipa técnica e dos actores, a apresentação da autoria de Graça P. Corrêa («Beatrix Cenci em 2021»); quatro passagens alusivas a Beatriz Cenci na literatura (Charles Dickens, Herman Melville, Stendhal e Nathaniel Hawthorne); a transcrição do excerto de um livro de Graça P. Corrêa, em que analisa o livro de Percy Shelley, Os Cenci, do 1º quartel do século XIX, em cuja versão se inspirou para escrever esta peça; e, finalmente, breve trecho em que Ros Murray se refere à versão dramatúrgica desta história encenada por Antonin Artaud em 1935, interrogando-se se estaremos perante o «preâmbulo a um teatro da crueldade». De permeio, reproduções de quadros e de esculturas sobre o drama de Beatrix, a mostrar como, ao longo dos séculos, ele tem sido recordado. Aliás, como para exorcizar o espírito da jovem – que, reza a tradição, se passeia de cabeça decapitada nas mãos pela ponte de Roma, na noite anterior ao aniversário da sua execução – aí se pôs uma lápida a proclamar que, a 11 de Setembro de 1599, Beatrix ali foi «vítima exemplar de uma justiça injusta».
            «Para quê contar esta história tão pesada e agonizante numa época já de si tão conturbada e tortuosa, e que tão pouco tem de genuína alegria e luminosidade?» – pergunta Graça P. Corrêa. E responde:
«Para lembrar a opressão, vasta e entranhada. Para lembrar que a revolta é uma arma contra a injustiça. Para afirmar a liberdade luminosa da vida contra a mesquinhez servida pelo autoritarismo».
            Dói ver. Importa, porém, que se veja e se medite!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 340, 2021-11-24, p. 6.

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário