segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O panteão documentado em Conímbriga II

          Religião, relação íntima do Homem com o Divino, constitui domínio de difícil penetração. Haverá construções destinadas ao culto; esculturas a representar divindades; objectos rituais… São, todavia, escassas epígrafes o documento primordial para se saber de divindades veneradas; limitado é, pois, o que se conhece do panteão romano em Terras de Sicó.
            Muitas epígrafes poderão vir a encontrar-se, por exemplo, nas paredes das casas de Condeixa-a-Velha. É que são árulas, de contexto privado, o que se tem – e é, de facto, um conjunto singular! Faltam-nos, porém, os textos oficiais, exarados, verosimilmente, em monumentos maiores que na muralha e nas paredes das casas da aldeia tiveram, seguramente, utilização privilegiada, esquecidos os homens do significado dos estranhos dizeres!
Notável, porém, esse conjunto de pequenos altares domésticos, em que, a par do deus maior, Júpiter Óptimo Máximo, se homenageiam divindades que mais se prendem com devoções particulares: Minerva, os Lares sob diversas invocações, Liber Pater, Aqua (!)… E até as dedicatórias ao Génio de Conimbriga e à cidade em si (considerada como algo de sagrado, porque tem Lares a protegê-la), parecem ter resultado mais de um acto pessoal sem envolvimento de hierarquias.
Júpiter Conimbricense?
           Propôs Robert Étienne que, no altar dedicado por um indígena – Tangino, filho de Tongina – a I. O. M. C., o C final, em vez de Conservatori como noutros locais acontece, significasse C(onimbrigensi) ou C(onimbrigae). O deus maior dos Romanos, Júpiter Óptimo Máximo, assumiria, desta sorte, roupagem local, à medida dos Conimbrigenses… E tal não seria de admirar, pois que temos também dedicatória Flaviae Conimbrigae et Laribus eius, «à Flávia Conímbriga e aos seus Lares». O culto da ambiguidade era aliciante para o Romano, como o é, nos nossos dias, para os publicitários… Assim, em sigla, terá sido deixado de propósito: cada qual entenda como quiser…
Temos, todavia, uns Lares das Águas (Lares Aquites), estranha designação que acentua esse carácter autóctone que as divindades depressa por Terras de Sicó assumiram e reivindicaram. E davam-se-lhes graças por, vinda de Alcabideque, água, de facto, não faltava! Aliás, decerto também devido a esse acentuado localismo, um dos pequenos grupos étnicos, os atrás citados Lubancos, quis ter Lares próprios…
Lugar à parte pode merecer uma dessas árulas mais mimosas, a que já aqui nos referimnos: a que Valério Dafino, porventura um liberto, dedica Libero Patri, «o Pai Líber», deus itálico da fecundidade, assimilado a Baco. A expressão Liber Pater, além de parecer mais ‘familiar’, abarca um significado maior: a fecundidade, entendida não apenas no sentido próprio de perpetuação da família através de novas e saudáveis gerações, mas também numa acepção mais ampla, a da prosperidade: próspero é o que vence obstáculos, aumenta o seu prestígio, goza o seu bem-estar… Que melhor bênção haveria de querer Valério Dafino?!
Ocultas (por enquanto, creio) a nossos olhos as solenes dedicatórias maiores, apetece-nos, pois, ficar assim aconchegados a númenes protectores, muito nossos, desprovidos de galas sumptuárias!... Por Terras de Sicó!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado a 16 de novembro de 2021 no blogue dos amigos de Conimbriga:

https://laconimbriga.blogspot.com/2021/11/o-panteao-documentado-em-conimbriga.html

 

1 comentário:

  1. Belo texto sobre uma matéria que me fascina. Para dizer a verdade, estava mesmo a precisar de uns deuses familiares para protecção deste lar (o meu)...Mas não seria menos aliciante comprar uma velha casa ali por Condeixa-a-Velha e encontrar uma epígrafe daquelas que merecessem notícia (privada). Acho que, acompanhando a leitura do belo AS PEDRAS QUE FALAM, de José d´Encarnação e tendo relido mil vezes A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, voltarei a visitar esta bela crónica, pelo prazer que me dá e pela informação que recolho. Muito grata.

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