«A Lara Bacelar encantou-se na
noite passada, depois de uma longa espera, sem que saibamos qual a sua ligação
ao mundo».
Assim me
escreveu a Maria, explicando-me que poderá ter sido a doença das vacas loucas a
destruir-lhe as ligações nevrálgicas/neurológicas que a faziam corpo activo e
presente. Faleceu, depois de muitos meses sem dar sinal de conexão com a vida. Encantou-se.
–
“Encantou-se”, Maria? Que queres tu dizer com isso?
–
No Nordeste do Brasil, quando alguém morre, diz-se que se encanta. Passa a ser
pessoa encantada, como as nossas princesas encantadas. Adoro essa ideia. Pensar
que minha mãe está encantada e que me vê quando estou na casa dela é
maravilhoso!
Guarda
o léxico brasileiro, como é sabido, muitas palavras quotidianas herdadas de
tempos idos, verdadeiros fósseis envoltos de eternidade. Ao chegarmos a um
aeroporto, buscamos aí as bagagens depositadas numa esteira rolante e não no
tapete; ‘esteira’ é muito mais nosso, próximas das nossas raízes, da palavra
latina storea… E, sabe-se, é nos ambientes concretos, rurais que de ‘esteira’ se fala.
Tanta
vez que há referência às vetustas histórias das mouras e das princesas
encantadas. Dormem um sono eterno, que só por milagre junto delas chegará o
príncipe capaz de as desencantar. O beijo que há milénios está a tardar!
E
porque será que descobrimos, um dia, quantas histórias estão ligadas entre si,
qual invisível cordão umbilical transmissor de Sabedoria?
«Quando
se ama uma flor plantada numa estrela, sabes, é um encanto, à noite, olhar para
o céu: todas as estrelas estão floridas!» – explicava o Principezinho à Raposa.
Um
encanto.
Encantamento.
Uma
outra dimensão, de que, afinal, tão poucas vezes nos apercebemos.
Agora,
foi o encantamento da Lara Bacelar. Um murro no estômago, porque diariamente se
esperava um milagre. Os que de perto com ela conviveram poderão aperceber-se,
agora, que o milagre foi outro: acutilante, eloquentemente loquaz na branca
suavidade do silencioso encantamento.
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 27-9.2025:




