terça-feira, 16 de setembro de 2025

Uma gente voltada pró mar!

            Dedicar quatro crónicas a uma mesma estrutura arqueológica pode parecer excessivo, tantos outros motivos haverá para concitar a atenção e mostrar quão rico está o território algarvio em vestígios da época romana.
À primeira vista, sim: é excessivo! Se, porém, se atentar no seu enorme significado histórico-cultural, decerto o leitor se não arrependerá de voltar a ler algo mais sobre o mosaico do Oceano, a que, mui pomposamente, se quis – e bem! – dedicar toda uma sala do Museu Municipal de Faro.
Analisámos os antecedentes. Veja-se agora o significado cultural.
 
 1º) O Deus Oceano

Admirar-se-á o requinte com que o artífice deu sugestivas tonalidades à testa e às maçãs do rosto.
Apetecer-nos-ia cofiar-lhe o retorcido bigode, a impor venerando respeito. Preferíamos que nos olhasse de frente, em vez de, com aquele ar ligeiramente alheado, prantar, quase indiferente, os olhos no além E será que não sente as tenazes dos lavagantes e as alevantadas antenas das lagostas que se passeiam pela desgrenhada cabeleireira?
Empresta-lhe a auréola um ar divino, acima dos mortais e, se pensativo se mostra, esperamos que seja por estar demasiadamente ocupado em proteger mareantes das sempre inesperadas traições dos elementos marítimos,  nem sempre subjugados pelo seu enorme poder. Haveria, nos quatro cantos, a representação dos ventos – Bóreas (o vento norte), Zéfiro (de oeste), Euro (de leste) e Noto (de sul) – a fim de lhe dar uma dimensão universal. Restam dois.
 
2º) A legenda
 

Não são vulgares os mosaicos romanos que apresentem legenda escrita. Os anteriores trabalhos urbanos, executados sem acompanhamento arqueológico, acabaram por arrancar as tesselas passíveis de nos elucidarem acerca da identidade total dos quatro personagens ali citados, enquadrados numa cartela em forma de clássica tabula ansata, que é o nome que se dá a uma cartela com a representação de pegas de um lado e doutro.
Ora, o pouco da inscrição que nos resta permitiu aos epigrafias sugerir a reconstituição do que o descuidado obreiro arrancou.
Assim, com maior ou menor ajuste de letras, parece consentâneo restituir: solum tessellasque de suo straverunt et donarunt. Isto é: foi às suas custas que se adquiriu o espaço (o solo) e se realizaram os trabalhos preparatórios e os seguintes de ‘estender’ o mosaico. Pagaram, pois, a todos os intervenientes na confecção. Por fim, donarunt, ‘ofereceram’. Oferecimento que se subentende ter sido mui solenemente feito a toda a comunidade ossonobense.
Quatro são os cidadãos aí referidos. Do primeiro sabemos que se chamava Caius Calpurnius (Gaio Calpúrnio), tendo apenas a terminação do cognome (que era o terceiro nome com que o cidadão romano se identificava). Dispomos do nome completo do segundo: Caius Vibius Quintilianus. O terceiro tinha Lúcio como primeiro nome; seria muito provavelmente da família Atília e o terceiro nome sumiu! O quarto cidadão vem identificado por inteiro: Marcus Verrius Geminus (em português: Marco Vérrio Gémino). Tudo nomes bem latinos.
E quem seriam este senhores, na orgânica da sociedade ossonobense?
Como os seus eventuais cargos ou funções não vêm mencionados (e isso até se compreende, por não se terem querido pôr em bicos de pés…), somos levados a pensar que agiram, primeiro, em representação da comunidade, mormente do seu estrato populacional estreitamente ligado ao comércio marítimo; e, em segundo lugar, porque os poderiam ter elegido quatuórviros (qual comissão ad hoc de quatro membros), expressamente, ou não, para superintenderem à pavimentação deste edifício, seguramente o salão de visitas, digamos assim, de uma instituição estreitamente ligada à atividade marítima.
 Honras lhes terão sido concedidas, não há dúvida, por ocasião da solene inauguração daquela sede, que bem sumptuosa deveria ser; honra lhes concedemos nós, hoje, por nos haverem legado monumento de tamanha excelência.
Beliscaram-lhe os incautos parte da sua mensagem. Pedimos-lhes desculpas pelo desaforo; mas prometemos que doravante vamos estar mais atentos ao seu legado!
Bem hajam Calpúrnio, Víbio, Atílio e Vérrio!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Sul Informação 13-09-2025: https://www.sulinformacao.pt/2025/09/uma-gente-voltada-pro-mar/   

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