Dedicar quatro
crónicas a uma mesma estrutura arqueológica pode parecer excessivo, tantos
outros motivos haverá para concitar a atenção e mostrar quão rico está o
território algarvio em vestígios da época romana.
À primeira
vista, sim: é excessivo! Se, porém, se atentar no seu enorme significado
histórico-cultural, decerto o leitor se não arrependerá de voltar a ler algo
mais sobre o mosaico do Oceano, a que, mui pomposamente, se quis – e bem! –
dedicar toda uma sala do Museu Municipal de Faro.
Analisámos os
antecedentes. Veja-se agora o significado cultural.
Admirar-se-á o
requinte com que o artífice deu sugestivas tonalidades à testa e às maçãs do
rosto.
Apetecer-nos-ia
cofiar-lhe o retorcido bigode, a impor venerando respeito. Preferíamos que nos olhasse
de frente, em vez de, com aquele ar ligeiramente alheado, prantar, quase
indiferente, os olhos no além E será que não sente as tenazes dos lavagantes e
as alevantadas antenas das lagostas que se passeiam pela desgrenhada
cabeleireira?
Empresta-lhe a
auréola um ar divino, acima dos mortais e, se pensativo se mostra, esperamos
que seja por estar demasiadamente ocupado em proteger mareantes das sempre inesperadas
traições dos elementos marítimos, nem
sempre subjugados pelo seu enorme poder. Haveria, nos quatro cantos, a
representação dos ventos – Bóreas (o vento norte), Zéfiro (de oeste), Euro (de
leste) e Noto (de sul) – a fim de lhe dar uma dimensão universal. Restam dois.
2º) A legenda
Não são
vulgares os mosaicos romanos que apresentem legenda escrita. Os anteriores trabalhos
urbanos, executados sem acompanhamento arqueológico, acabaram por arrancar as tesselas
passíveis de nos elucidarem acerca da identidade total dos quatro personagens
ali citados, enquadrados numa cartela em forma de clássica tabula ansata,
que é o nome que se dá a uma cartela com a representação de pegas de um lado e
doutro.
Ora, o pouco
da inscrição que nos resta permitiu aos epigrafias sugerir a reconstituição do
que o descuidado obreiro arrancou.
Assim, com
maior ou menor ajuste de letras, parece consentâneo restituir: solum
tessellasque de suo straverunt et donarunt. Isto é: foi às suas custas que
se adquiriu o espaço (o solo) e se realizaram os trabalhos preparatórios e os
seguintes de ‘estender’ o mosaico. Pagaram, pois, a todos os intervenientes na
confecção. Por fim, donarunt, ‘ofereceram’. Oferecimento que se
subentende ter sido mui solenemente feito a toda a comunidade ossonobense.
Quatro são os
cidadãos aí referidos. Do primeiro sabemos que se chamava Caius Calpurnius
(Gaio Calpúrnio), tendo apenas a terminação do cognome (que era o terceiro nome
com que o cidadão romano se identificava). Dispomos do nome completo do segundo:
Caius Vibius Quintilianus. O terceiro tinha Lúcio como primeiro nome;
seria muito provavelmente da família Atília e o terceiro nome sumiu! O quarto cidadão
vem identificado por inteiro: Marcus Verrius Geminus (em português:
Marco Vérrio Gémino). Tudo nomes bem latinos.
E quem seriam
este senhores, na orgânica da sociedade ossonobense?
Como os seus
eventuais cargos ou funções não vêm mencionados (e isso até se compreende, por
não se terem querido pôr em bicos de pés…), somos levados a pensar que agiram,
primeiro, em representação da comunidade, mormente do seu estrato populacional
estreitamente ligado ao comércio marítimo; e, em segundo lugar, porque os
poderiam ter elegido quatuórviros (qual comissão ad hoc de quatro
membros), expressamente, ou não, para superintenderem à pavimentação deste edifício,
seguramente o salão de visitas, digamos assim, de uma instituição estreitamente
ligada à atividade marítima.
Honras lhes terão sido concedidas, não há
dúvida, por ocasião da solene inauguração daquela sede, que bem sumptuosa
deveria ser; honra lhes concedemos nós, hoje, por nos haverem legado monumento
de tamanha excelência.
Beliscaram-lhe
os incautos parte da sua mensagem. Pedimos-lhes desculpas pelo desaforo; mas
prometemos que doravante vamos estar mais atentos ao seu legado!
Bem hajam Calpúrnio,
Víbio, Atílio e Vérrio!
José d’Encarnação
Publicado em Sul Informação 13-09-2025: https://www.sulinformacao.pt/2025/09/uma-gente-voltada-pro-mar/
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