domingo, 25 de abril de 2010

Epigrafia no feminino na Lusitânia romana

RESUMO
Remeto para a bibliografia referências que poderão ser ponto de partida para quem deseje aprofundar o tema. E, portanto, das muitas inscrições passíveis de exemplificar a «epigrafia no feminino» na Lusitânia romana, escolho, quase ao acaso, uma que considero deveras elucidativa.



Reza assim este epitáfio da civitas Igaeditanorum:

AVNIAE ARANTONI(i) / CELTIATICI F(iliae) LANC(iensi) OPPIDANAE / COCCEIA SILONIS F(ilia) AVITA / NAEVIA SILONIS F(ilia) CLARA MATRI / F(aciendum) C(uraverunt)

A Áunia, filha de Arantónio Celtiático, lanciense opidana – Coceia Avita, filha de Silão, Névia Clara, filha de Silão, mandaram fazer à mãe.

Como se sabe, a mulher era, no Império Romano, identificada com dois nomes: o gentilício (nomen), que herdava do pai, e o cognome (cognomen), escolhido habitualmente de acordo com uma circunstância concreta ligada à família, elemento, portanto, identificativo da pessoa no seio familiar e social.
E o que vemos aqui?
A homenagem a uma mulher, destinada a ser colocada sobre a sua sepultura, ainda que, aparentemente, nada deixe transparecer um carácter funerário. E essa é a primeira reflexão a fazer. Trata-se de uma ambiguidade que interessa: Áunia, afinal, com o seu nome assim bem patente em lugar público, permanece no mundo dos vivos!
E não terá sido, na verdade, uma dama qualquer, pois há dois aspectos excepcionais: o pai vem identificado por dois nomes, quando o habitual é referi-lo apenas com um, o praenomen (assaz vulgar, como é o caso dos nossos primeiros nomes), e em sigla, quando a aculturação se encontra em estado avançado; ou com o nome indígena, nos primórdios dessa aculturação. No caso vertente, as filhas seguem esse esquema identificativo indígena: «de Silão»; mas do pai se aponta o nome de família – Arantonius – e o cognomen, Celtiaticus. No entanto, para além disso, está expressa a sua naturalidade, como que para dizer «Áunia não nasceu aqui, aqui se radicou e notabilizou!». As gentes de Lancia Oppidana, sua terra natal, mantiveram, de facto, relações privilegiadas com a população da civitas Igaeditanorum, a darmos crédito à circunstância de outras personagens terem querido deixar exarada essa sua naturalidade em epígrafes. Em suma, logo a forma como vem identificada se revela do maior interesse.
Atente-se, por outro lado, que o monumento é mandado erigir pelas duas filhas. Áunia, pertencente a uma família importante de Lancia Oppidana, a referida gens Arantonia, casou, pois, com um membro da elite local, decerto protegido («cliente», diríamos, para usarmos uma linguagem mais ‘técnica’) de duas famílias notáveis, que tinham, mui provavelmente, participado na ‘criação’ da civitas: a Cocceia e a Naevia. Estes dois gentilícios identificam, na verdade, famílias de renome na Lusitânia; e o que é, neste caso, assaz estranho à primeira vista, é que, filhas do mesmo pai, Avita e Clara hajam recebido gentilícios diversos – como que a mostrar o estrito relacionamento do pai com essas duas famílias influentes.
Por consequência, singelas quatro linhas detêm um significado invulgar. Para os historiadores que os analisam, mas também – e principalmente – para a população de então, porque pais e filhos, mães e filhas, se passeariam por entre epígrafes e curiosidade não lhes faltaria: «Mãe, pai, que diz aqui? Quem foram estas pessoas? E porque lhes escreveram aqui os seus nomes?»... Uma lição de vida, instantâneos de um quotidiano, em que o feminino, não podendo oficialmente ‘falar’ na respublica, sabia muito bem ‘falar’... em público, através de uma mensagem duradoura. Mais duradouras, aliás, que os discursos dos políticos!...


Anexo bibliográfico
Apenas duas ou três menções, susceptíveis de deixar perceber quanto o tema vem despertando, nas últimas quatro décadas, a atenção dos investigadores:

– ALBERTOS (M. de Lourdes), «La mujer hispanorromana atraves de la epigrafia», Revista de la Universidad Complutense, vol. XXVI, nº 109, 1977, 179-198.
– DEL HOYO (Javier), «El sacerdocio femenino, medio de integración de la mujer en las estructuras municipales de gobierno», Epigrafía y Sociedad en Hispania durante el Alto Imperio: Estructuras y Relaciones Sociales (ed. de S. ARMANI, B. HURLET-MARTINEAU e A. U. STYLOW), Alcalá, 2003,
– ENCARNAÇÃO (José d’), «Mães e filhos passeando por entre epígrafes», in Mª Carmen SEVILLANO SAN JOSÉ et alii (edits.), El Conocimiento del Pasado. Una Hierramienta para la Igualdad, Salamanca, 2005, 101-113.
– FERNANDES (Luís), «A presença da mulher na epigrafia do conventus Scallabitanus», Portugalia 19-20 1998-1999 129-228.
– MELCHOR GIL (Enrique), «Mujer y honores pÚblicos en las ciudades de la Bética», in BERRENDONER (Clara), CÉBEILLAC-GERVASONI (Mireille) et LAMOINE (Laurent) [dir.], Le Quotidien Municipal dans l’Occident Romain, Presses Universitaires Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand, 2008, 443-457.
– NAVARRO CABALLERO (Milagros), «Mujer de notable: representación y poder en las ciudades de la Hispania imperial», Epigrafía y Sociedad en Hispania durante el Alto Imperio: Estructuras y Relaciones Sociales (ed. de S. ARMANI, B. HURLET-MARTINEAU e A. U. STYLOW), Alcalá, 2003, 119-127.
– SÁ (Ana Marques de), «Mulheres da civitas Igaeditanorum», Lusitanos e Romanos no Nordeste da Lusitânia (Actas das 2as Jornadas de Património da Beira Interior), Guarda, 2005, 207-213.

Publicado em Philía (Jornal Informativo de História Antiga, Núcleo de Estudos de História Antiga da UERJ, Rio de Janeiro), ano XII, nº 34, Abril/Maio/Junho 2010, p.6.

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