quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rimas pensadas no longo caminho…


Contando mais de oito dezenas de primaveras – não, não podemos dizer que noutra estação da vida se encontre… – João Baptista Coelho perfaz apenas as bodas de prata da sua actividade literária como poeta, pois que por essas veredas lhe apeteceu singrar em 1984, quando se aposentou de secos números e mui fastidiosas contas.
E fala-se de bodas porque de feliz casamento se trata: paixão, enlevo, êxtase, namoro prolongado com a serena Beleza das letras, dos ritmos, do embalar remansoso das rimas pensadas…
Presença obrigatória em tudo quanto é jogo floral, de norte a sul do País, numa investigação aturada que lhe doira os versos e lhes confere o adequado sentido, João Baptista Coelho constitui, pelas centenas de prémios já conquistados, um dos casos sérios do panorama poético português. Não paira, todavia, no mundo dos que, de nome feito, aparecem nos jornais e nas canções televisivas – que nesse mundo, aliás, muita feira de deslumbrantes vaidades também se descobre… Mais recatado, outros horizontes o rodeiam, próximos das gentes, das vidas, da… Vida!
«Havia na terra de Hus um homem chamado Job, íntegro e recto, que temia a Deus e fugia do mal» (Job, 1, 1). Incitado por Satanás, Deus não hesitou em o pôr à prova: dum pedestal de riqueza, criadagem muita, prestígio social relevante, fê-lo descer ao charco enlameado da ignomínia, do pão que se tem de esmolar, da lepra maligna até: «E Job raspava o pus com um caco de telha e assentava-se sobre a cinza» (Job, 2, 8). Exemplar foi num estádio e noutro, provações muitas, palavras insidiosas de amigos e de familiares chegados – e Deus o premiou:
«Depois disto, Job viveu ainda cento e quarenta anos e viu os seus filhos e os filhos dos seus filhos até à quarta geração. Depois morreu velho e cheio de dias» (Job, 42, 16-17).
Muitos jobs se cruzam hoje no nosso caminho, nem sempre, porém, com esse brado de gratidão: «Sei que podes tudo e nada Te é impossível» (Job, 42, 2). Amiúde nós próprios jobs nos sentimos – e difícil nos é imitá-lo.
Job se sentiu João Baptista Coelho e, por isso, em 30+1 sonetos (uma das formas poéticas que mais aprecia e que bem sabe burilar), contou-nos de si, dos seus vagueares, altos e baixos, sonhos, quimeras, oiros, cálices de inebriante medronho, tragos de fel bem amargo… «Uma história igual à de mil outros cidadãos», «de grandes, de pequenos, de meãos». Grão que se torna gente; que teve hora de brincar; que plantou «a velha árvore do pecado»; vagabundo; a dureza do pão-trabalho e a incandescência do pão-amor; a Poesia, «bálsamo na vida tão cinzenta», «oração que me atavia»…
E, decididamente, João Baptista Coelho, viagem feita, jaz escravo ganhador:

… neste cais da fantasia,
atado, mãos e pés, à Poesia,
tão pobre, mas tão rico, como Job.


Nisto se distinguem os Poetas: no olhar perspicaz para a realidade envolvente. Em décimas se passeiam os (ditos) poetas populares (alentejanos e algarvios, sobretudo) pelas terras do nosso País, pela história de reis e de rainhas que aprenderam de cor nos bancos da Instrução Primária – e é um encanto segui-los. João Baptista Coelho optou, aqui, por uma outra viagem, a do seu tempo de Homem, a do nosso tempo de Homens. E, como ele, afinal, todos bem nos sentimos na nossa pele de jobs. Milénios decorridos, o Homem permaneceu igual a si mesmo, em hino magnífico ao privilégio de… estar vivo!
«Depois disto, Job viveu ainda cento e quarenta anos…».

Cascais, 13 de Março de 2010

Prefácio do livro Um Outro Livro de Job (30 Retratos de uma Peregrinação), de João Baptista Coelho, Câmara Municipal de Cascais, 2010, p. 3-5. [ISBN: 978-972-637-236-3].

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