segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Espaço-Memória do TEC

REPOSITÓRIO DE LUTAS E DE EMOÇÕES

Tem Cascais uma série de museus, a merecerem visita não apenas dos forasteiros mas também – ia a dizer: sobretudo – dos seus habitantes. Um museu não é, de facto, um amontoado mais ou menos organizado de velharias; constitui, ao invés, um lugar de memória – e um povo (como os seus governantes…) sem memória é um povo perdido. O Espaço-Memória do TEC, ali na Av. Marechal Carmona, é um desses lugares, repositório de lutas e de emoções.em>

Uma evocação pessoal
Como redactor do Jornal da Costa do Sol tive ensejo de acompanhar, a par e passo, a longa odisseia desta companhia teatral, que a muito custo se instalou, em 1965, no Teatro Gil Vicente, o santuário do teatro amador, no coração da vila velha, aureolado de uma tradição que vinha do tempo dos reis!
Apoiante indefectível – sempre! – das manifestações culturais, nomeadamente das que brotavam da iniciativa das colectividades, a equipa de Jornal da Costa do Sol, liderada pelo seu fundador e director, João Martinho de Freitas, teve, porém, em relação ao empreendimento de Carlos Avilez e de João Vasco, os seus rostos mais significativos, uma atitude do mais incondicional apoio, até porque sabíamos quanto sobre eles pesava o olhar feroz da Censura!
E se Jornal da Costa do Sol, a partir de determinado momento, teve de começar a enviar à Comissão de Censura as provas de página (porque os senhores do lápis azul não confiavam em nós e já, maliciosamente, deixáramos em branco um pedaço de página equivalente ao texto que fora censurado…), o Teatro Experimental de Cascais era visitado amiúde nos ensaios e, de modo muito especial, no ensaio geral, não sendo raro que, à última hora, se tivessem de alterar frases, gestos… eu sei lá!
Fui a casa de João Martinho de Freitas uma semana antes de ele falecer (a 4 de Julho de 1971). Levava-lhe o meu comentário acerca da peça Ivone, Princesa de Borgonha, do polaco Gombrowicz, que estreara a 20 de Junho. Lembro-me de me ter perguntado como era o espectáculo e ter ficado muito contente com o que lhe contava, entusiasmado também, como eu estava, com o que vira. Curiosamente, o texto viria a ser publicado na edição de 3 de Julho (pág. 5), o último número de Jornal da Costa do Sol saído sob sua direcção. Ivone era… Zita Duarte – e foi essa a imagem escolhida pela direcção do TEC para identificar o Espaço-Memória.
«Zita Duarte (Ivone) atinge o máximo: máscara imperturbável, semilouca, duma serenidade dominada até ao paroxismo, exacta na expressão facial e no andar. A sua melhor interpretação de sempre, a merecer um caloroso aplauso. Todo o resto não prestasse, valeria a pena deslocar-se a Cascais para ver Zita Duarte» – escrevi então.

129ª produção
Tem uma razão de ser a escolha deste tema para a rubrica ‘Patrimónios cascalenses’: é que, no programa da peça ora em cena no Mirita Casimiro, O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams, recorda-se que esta é a 129ª produção da Companhia, a celebrar o seu 45º aniversário; e, no preâmbulo, as palavras de Carlos Avilez são apenas de agradecimento aos que nesta peça trabalharam com ele e, por extensão, a quantos constituem «a imagem exemplar de uma companhia que comemora 45 anos de existência»: «Para todos o meu muito obrigado», conclui. Mais adiante, no termo da conversa que teve com Eunice, Pedro Caeiro e Miguel Graça, confessou:
«Não me importava de não fazer mais teatro e ficar como a senhora Goforth, fechado num montanha a viver momentos como os que passámos nestes ensaios, e a recordá-los».
Posso, sem dúvida, extravasar deste dado concreto para o geral: Carlos Avilez tem razões de sobra para não deixar que morram recordações. E para isso aí está o Espaço-Memória, que, aliás, lhe é dedicado, pela sua «vida inteira dedicada ao teatro», como escreveu João Vasco, a 13 de Abril de 2004, no folheto distribuído por ocasião da inauguração.

Um espaço de «passado com futuro»
Soará a lugar-comum a expressão «passado com futuro»; é, todavia, essa a finalidade deste espaço, criado num dos lugares por onde a companhia teve provisório poiso, onde chegou a haver representações.
Explica-se que ali se pretende documentar «o percurso da Companhia entre 1965 e 2003», «o primeiro acto de mostragem do nosso acervo museológico», no que concerne aos espectáculos de estreia, deixando para outra oportunidade (será o Espaço-Memória 2, a concretizar – oxalá! – no projecto de Carcavelos) a documentação relacionada com as digressões e obras de arte concebidas por colaboradores como Francisco Relógio (mostram-se na exposição os figurinos relativos a Gil Vicente, mas falta o painel concebido para a Expo’70 no Japão), Graça Morais (os painéis para a peça Os Biombos, de Jean Genet)…
Em todo o caso, há por ali muito para apreciar mesmo nesse aspecto artístico: a maqueta de Mestre Almada Negreiros para O Mar, de Miguel Torga, aquela em que António Feio se estreou; figurinos de Mestre Júlio Resende… Pelo TEC passaram – continuam a passar, acrescento – «grandes figuras da nossa cultura», salientou João Vasco. É, aliás, esse um dos apanágios da companhia, que, aproveitando o espaço para exposições temporárias (está lá agora a evocativa de Carlos Paião, depois da de António Feio), desta forma vai perpetuando a memória desses vultos.
Não esqueçamos que ao TEC se deve a criação da Escola Profissional de Teatro de Cascais, alfobre de muitos dos actores que hoje dão cartas nas telenovelas e nos palcos, e a preocupação didáctica de Carlos Avilez, de João Vasco e, de resto, de muitos dos elementos da companhia, professores também eles naquela escola, tem estado sempre presente: queremos mostrar isto «às novas gerações de actores»: temos «o dever de os apoiar e incentivar, transmitindo-lhes a mensagem que é preciso lutar para que as instituições e o público nos respeitem». «Um país sem cultura está moribundo», perorou.

Pessoas
Nunca será de mais salientar o papel desempenhado por Joaquim Miguel de Serra e Moura, na sua qualidade de Presidente da Junta de Turismo da Costa do Sol, no apoio incondicional ao TEC desde a primeira hora, contra ventos e marés, ele que era, teoricamente, paladino da situação, enquanto as peças do TEC visavam alertar o público para o verdadeiro significado da cidadania autêntica!
Andou este espólio de armazém em armazém e, durante anos, incumbiu-se voluntariamente Olga Sande Freire, antes de ser vereadora da Câmara, da árdua tarefa de tudo miudamente catalogar e organizar.
Duas pessoas (Serra e Moura e Olga Freire) que cuidaram… de pessoas! Dir-se-á que estão ali roupas, cenários, adereços, música… e não pessoas! Puro engano! «O teatro», anotou João Vasco no texto que estou a seguir, «é uma arte efémera, pois, cada noite, quando cai o pano e cessam os aplausos, fica unicamente a memória daquilo que o actor transmitiu aos espectadores através da sua arte»; mas «a sua angústia fica consigo», na vontade de «criar energias para recriar o seu próximo personagem»…
Certo, há material disponível para se ver e ouvir: uma entrevista a Jean Genet (de quem o TEC representou As Criadas e Os Biombos); um documentário sobre Mirita Casimiro (que sempre se recordará, azougada, em A Maluquinha de Arroios, de André Brun [1966]); um outro sobre o que foi o Dia de Portugal na Expo’70… Sim, aí há pessoas que se ouvem, que connosco convivem mais sentidamente. Contudo, difícil é mostrar, senão evocando, o que foi a cenografia dum Rei Lear ou, de modo muito especial, de uma Fuenteovejuna, de Lope da Vega, uma peça escrita em 1610, mas que tantos engulhos causou à Censura e ao TEC, pela sua tremenda actualidade, por representar a rebelião de um povo contra a tirania e a injustiça (estávamos, recorde-se, antes do 25 de Abril!...)...
E volto, pois, a quarenta anos atrás, ao que anotei sobre Ivone, Princesa de Borgonha – porque, além de isso ser passível de se afirmar, ainda hoje, em relação a todas as encenações de Carlos Avilez, aponta justamente esse trabalho enorme que está por detrás de uma peça:
«Todos os trunfos de que o Teatro dispõe foram aproveitados para dar o maior relevo a cada uma das intencionalidades de Witold Gombrowicz: o cenário desnudado e diversificado em planos; os figurinos intencionais; o gesto exacto, quase-milimétrico; o tom de voz; a sonoplastia (raro xilofone em breve melodia, tímido gongo aqui e além disperso); a luz».
Espaço-memória: objectos que foram vida, intimamente ligados a pessoas, a sonhos, lutas, emoções… Para estudar de mansinho.

Publicado na revista Sekreta, de Cascais, II série, nº 7, Março de 2011, p. 10 e 11 (que se reproduzem a seguir)



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