quinta-feira, 7 de novembro de 2013

«Tocha, uma história com futuro»

Uma síntese do conteúdo

            Bem guiada por Jorge Fragoso, prossegue a editora Palimage a sua odisseia de dar vida à colecção «Raiz do Tempo», em boa hora iniciada em 1997, que conta já com 33 volumes publicados, a privilegiar as monografias locais e a temática histórica em geral.
            Tocha, uma História com Futuro – editado, mais uma vez, em colaboração com uma entidade local, neste caso, a Junta de Freguesia de Tocha, do concelho de Cantanhede – é o mais recente desses volumes. Da autoria de Margarida Sobral Neto (a directora, aliás, da colecção e docente da Faculdade de Letras de Coimbra), foi apresentado pelo Eng. Manuel Queiró, a 12 de Outubro p. p., precisamente na sede da Junta de Freguesia.
            De 254 páginas e ISBN 978-989-703-065-9, 12 folhas em papel couché para as ilustrações a cores, o livro consta de quatro partes:
            a construção de um território e a organização de uma comunidade (p. 23-114);
            os séculos XIX e XX apresentam-se como «um tempo novo para a freguesia da Tocha» (p. 115-150);
            «um futuro em construção» a partir da década de 80 do século XX é a III parte (p. 151-161);
            «marcas de identidade, património, lugares de memória, tradição, modernidade» são os oportunos tópicos abordados na parte IV (p. 163-208).
            A antecedê-las: a nota de abertura, da responsabilidade do presidente da Junta, Júlio de Oliveira, e o prefácio, da autoria de Fernanda Cravidão, numa abordagem geográfica do território gandarês. A complementá-las: as já referidas imagens, a conclusão (p. 203-208), o apêndice documental (seis documentos, entre os quais avultam os que dizem respeito ao culto e devoção a Nossa Senhora da Atocha); fontes, bibliografia e notas.

Os palheiros, a leprosaria
            Tocha será para muitos a imagem dos palheiros, aquelas sábias construções de madeira plantadas sobre o areal, de tal maneira que temos dificuldade em perdoar a Raul Brandão por não os ter expressamente referido, privilegiando a vizinha Praia de Mira: no seu livro clássico, Os Pescadores (nº 269, Livros de Bolso de Publicações Europa-América, Algueirão, s/ d.), um dos capítulos (p. 65-76) é precisamente sobre os «Palheiros de Mira» e ao ambiente da Tocha não alude.
            Aliás, Margarida Neto também dedica apenas duas páginas (168-169) aos palheiros e à arte xávega, não esquecendo, porém, a frase de Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano: os palheiros são, aqui, «um exemplo perfeito de construção palafítica». E não se esquece de os ilustrar através de quatro fotografias. No entanto, a Praia de Mira sempre logrou chamar mais a atenção, embora na Tocha idênticos costumes se praticassem; a actividade agrícola terá, contudo, assumido habitualmente a primazia.
            Para outros, como a mim acontece, Tocha recorda-me de imediato o Hospital Rovisco Pais, que tive ocasião de visitar demoradamente no Verão de 1973, mui amavelmente acompanhado pelo médico de serviço, Dr. José Augusto da Mota Arnaut e pelo vice-administrador, Valentim José Pereira. Dessa visita elaborei ampla reportagem, que, submetida, a seu pedido, à ratificação da direcção, acabaria por só ser publicada após a Revolução de 25 de Abril, pois nunca me foi dada autorização para a publicar antes.[1]
             E ainda hoje recordo com emoção as conversas que pude travar com alguns leprosos e, de modo especial, o haver podido ter ao colo um bebé de leprosos que estava no Preventório, situado mais a sul, ligeiramente afastado da ‘colónia’, e que tinha à entrada assaz gracioso grupo escultórico que serviu de capa ao nº 3 (ano XI), de Julho/Setembro de 1972, da Revista Portuguesa da Doença de Hansen, Rovisco Pais, um número especial comemorativo das bodas de prata da instituição. E em apêndice a essa reportagem já pude referir a publicação da portaria de 3 de Julho de 1974, emanada da Secretaria de Estado da Saúde, visando, com a colaboração de todos, designadamente dos trabalhadores, promover a remodelação do hospital-colónia.
            E o termo ‘colónia’ quadra-se bem com o que para ali se projectara e o que pude apreciar: uma existência em certa medida auto-suficiente, em que a exploração agro-pecuária e as oficinas satisfaziam as necessidades quotidianas fundamentais. Havia bairros residenciais, as famílias e respectivos filhos eram tidos em muita consideração.
            A Doutora Margarida Neto dedica à «instalação do Hospital Rovisco Pais» as páginas 147-150, tendo chegado à conclusão de que «apesar dos reais benefícios» que trouxe, o empreendimento não foi «a alavanca necessária ao crescimento económico e demográfico da Tocha», ainda que – reconhece – «alguns progressos se verificaram, entretanto, no sector agro-pecuário» (p. 150). Nas suas instalações funciona na actualidade o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro.

Uma «história com futuro»
            Torna-se sempre difícil fazer opções quando nos propomos elaborar a monografia de uma povoação.
            Privilegiamos a história em sentido estrito e seguimos cronologicamente os dados que a documentação nos fornece? Preferimos um enquadramento geográfico e destacamos a ocupação do solo, o regime de propriedade, a produção agro-pecuária? Damos mais atenção à demografia, às pessoas que, ao longo dos tempos, para ali foram ou ali sempre viveram, analisando como se deu a aculturação?
            Margarida Neto, de formação mais de História Económica e Social, privilegiou, pois, esses aspectos produtivos e a demografia, sendo sugestivo, por exemplo, o título 4 da I parte: «A “criação vagarosa da terra” e a arquitectura das paisagens» (p. 74), que denuncia precisamente essa opção pela economia agrícola gandaresa, onde a tutela do Mosteiro de Santa Cruz, de Coimbra, acabaria por exercer basta influência até à extinção das Ordens Religiosas, o conhecido decreto de 30 de Maio de 1834, que tal vínculo veio romper. Um vínculo nem sempre bem aceite ao longo dos tempos, haja em vista os motins de 1778, relacionados com a percepção de impostos sobre as colheitas («a partilha»): a 27 de Agosto desse ano, o oficial da justiça viu a sua vara «calcada e queimada», «destruíram-lhe a coifa, o chicote, o tinteiro e o rol, e ainda o maltrataram quebrando-lhe um dedo da mão esquerda e fazendo-lhe nódoas e feridas», segundo a versão do corregedor (p. 101). E, como não podia deixar de ser, lá vem um documento epigráfico a atestar duradouramente o que era preciso recordar:
            «Esta igreja he do Moesteiro de Sancta Cruz de Coimbra, a qual mandou fazer pera em ella serem curados os moradores desta sua quinta e de suas pertenças por serem fregueses do dito moesteiro e de sua capela de Sam João que he isenta com sua prarochia e parochianos da jurisdiçam ordinária e metropolitana. Anno do Senhor MDXXXXIII» – lê-se ainda hoje na placa sob cruzeiro inserida na parede da actual capela de Santo Amaro, matriz do Isento de S. João da Quintã (p. 35, fig. 2).
            Interessou, de facto, à Autora a comunidade da Tocha «como o estudo de caso de uma povoação que se organiza e se desenvolve até 1834 em contexto senhorial» (p. 203) e calcorreou depois outros caminhos. Pretendeu – e conseguiu – encontrar «traços estruturadores» de uma identidade e facultar elementos susceptíveis de virem a ser aproveitados como «matéria de reflexão para a construção de políticas de desenvolvimento local» (ibidem). Daí que à obra se haja dado o sugestivo título «uma história com futuro»!
            Curioso é verificar, a título de exemplo, que a vila da Tocha se organizou em torno de um culto, o de Nossa Senhora da Atocha, e de uma feira, insuficiente esta, porém, em si mesma, para determinar enraizamento duradouro das gentes, até porque as terras se apresentavam mais como «espaço de pastagem» (p. 204). Só a vinda do milho grosso das Américas viria a criar essas condições de fixação de que se havia mister. A batata e a produção leiteira ajudariam a completar o requerido para um dia-a-dia mais ‘aconchegado’.
            Trata-se, pois, de um volume que se lê com agrado e onde há temas que poderão ser transversais a outros locais na mesma época. Estou a lembrar-me (para citar apenas um caso) da «questão dos baldios da Caniceira» e a actuação, nesse âmbito, da Junta de Colonização Interna (p. 144-146), sabendo nós como os baldios constituíram sempre motivo de… «questão» em muitos sítios! E há mesmo, na Tocha, significativo monumento «Aos Caniceiros, defensores do pinhal do Povo»!

Publicado em Cyberjornal, edição de 6-11-2013:
Divulgado em: http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/histport/msg07315.html


[1] Saiu no Jornal da Costa do Sol (Cascais), nº 535, 20-07-1974, p. 4, sob o título «A extraordinária obra do Hospital-Colónia Rovisco Pais», ilustrada.

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