sábado, 21 de novembro de 2020

Chorumbato

            – Bêzeta, gato! Pára de me dar tarrutas e ronronar, que eu quero escrever a crónica com o tema que o Vítor Barros me sugeriu. Sei que tens uma cegueira por mim, quando mexo no teclado e adoras que o meu braço fique por baixo de ti. Não pode ser, Maio! Vai, vai dar um viajo, vai ver se o tempo está embrulhado ou se há aí pelo teu prato alguma sardinhita mesmo reimosa que seja. Vá, que ainda me pões uma porqueira nos olhos. Não, não estou no treco lareco com ninguém assim de viva voz, o barulho das teclas é que fala. Pronto, Maio, vai lá pró chão, desampara-me a loja!    
            Por sinal, hoje não estou chorumbato, que o dia não está embrulhado, amanheceu sorridente e os melros andam numa euforia de corrimaças amorosas, ora agora bico-te eu, ora agora bicas-me tu! Que enleio o daquele casal, senhores!...
            Pois foi sobre chorumbato que o Vítor me sugeriu que escrevesse. Uma palavra que ele ouvia da mãe. A Fonética tem destas coisas! Vamos modificando as palavras conforme nos dá mais jeito, preguiçosos que somos, prontos sempre a simplificar. Quem há aí que diga Co-ro-te-lo? É Cortelo e pronto! Com o ‘e’ aberto, como se tivesse acento. Chorumbato é, pois, nada mais do que sorumbático, palavra esta que, dita pelo Povo, até dava assim uns ares de intelectual: so-rum-bá-tico! Chorumbato é mais ao nosso jeito, pois então!
            E sorumbático o que é? A palavra deriva do latim «umbraticus», que quer dizer «sombrio», «que tem sombra» (em latim, sombra é «umbra»). Penso, porém, que se desejou acentuar esse carácter triste, melancólico, com o prefixo «sub», ‘debaixo de’; não bastava estar à sombra, era preciso dizer que se estava «debaixo da sombra»! Assim, um eventual subumbraticus deu… sorumbático! Qualquer delas, convenhamos, palavras bem mais difíceis de pronunciar que o chorumbato da mãe do Vítor Barros.
            Ficamos a saber da palavra; não queremos, porém, que seja essa a nossa normalidade. Nem no «novo normal» nem no outro de que bem temos saudades! Oh! Se temos!...

                                                           José d’Encarnação

            Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], 20-11-2020, p. 13.

 

3 comentários:

  1. Mas que delícia de texto que remete para designações semânticas que eu desconhecia. Nem o bêzeta gato, que lá longe só ouvia sape gato, nem tarrutas, que nos confins da memória só me me aparecem turrinhas. Agora o chorumbato é imperdível e estou certa que vou adoptar o vocábulo. O dia não esteve assim, mas eu senti-me um tudo nada chorumbata...Ea aindaa fiquei a pensar: se umbra em latim é sombra, será que a região italiana da Umbria é sombria?

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  2. Graças ao tema sugerido - e ao lindo Maio, claro - já aprendi novas palavras!

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  3. E, assim, neste dia invernoso em que me sentia pandemicamente chorumbato, veio de lá um sorriso que, com a vida, me deixou bem mais cordato...

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