quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Percas e perdas

 Para ilustrar a situação calamitosa em que se encontram os nossos cursos de água, provocada, de modo especial, pela existência de demasiadas barragens, quinta-feira à noite, 20, falou-se de percas no programa da RTP 1, “Linha da Frente”.
É fácil relacionar perca com perda, uma vez que, na realidade, amiúde ouvimos utilizar uma palavra em vez da outra. Perca é, de facto, um peixe; nada tem a ver com perda, ausência de qualquer coisa que antes se tinha...
E atentei no quão subjectivo é o significado profundo da palavra 'perda'.
¿Não é verdade que só damos valor ao que perdemos, no momento essa perda se verifica? Só então nos apercebemos da falta que nos faz e da quantidade de funcionalidades que tinha no nosso dia a dia.
Sentimo-lo durante estes tempos pandémicos. O significado de um abraço, que porventura antes davas quase instintivamente, sem lhe atribuíres uma importância por aí além. E que saudades agora!... Abrias a porta e logo a Bonnie vinha roçar-se nas tuas pernas, ronronando, a pedir-te uma carícia. A Bonnie, tua companhia diária durante dezasseis anos, repousa agora num aconchegado recanto do teu jardim – e tu vais continuar a sentir a falta da sua atenção.
Perda traz uma enorme sensação de vazio, de algo que, por mais insignificante que pudesse parecer, nos preenchia um pedacinho de vida.
Partiram recentemente o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Teles e o pintor surrealista Cruzeiro Seixas. Perdas, neste caso, nacionais e de repercussão internacional.
De Ribeiro Telles recordarei sempre uma das várias reuniões em que ambos estivemos presentes, para discutir processos de salvaguarda da Área Protegida de Sintra-Cascais. "Ponham-lhe gente dentro!", insistia. Gente que lhe cultive as áreas disponíveis, que ali leve os rebanhos. Diminuirá grandemente o risco de incêndio e haverá aproveitamento. "Ponham-lhe gente dentro!"
Ninguém como ele para humanizar a paisagem, para a fazer à nossa medida!...
Visitei Cruzeiro Seixas a 15 de Dezembro de 2010 , tinha acabado de fazer 90 anos, no apartamento em que vivia, numa casa de repouso junto à rotunda dos Reis de Espanha, na saída norte do Estoril.
Recordámos a sua passagem pela Junta de Turismo da Costa do Sol e, de modo especial, a celeuma que provocou a sua intenção de ali se fazer uma exposição erótica. Ia caindo o Carmo e a Trindade! E Serra e Moura, o presidente, sempre tão condescendente, tivera que ceder às pressões. A exposição não se fez.
Momentos altos se viveram, na ora integralmente morta galeria da Junta, durante o tempo em que Cruzeiro Seixas a dirigiu. Uma pedrada no charco no então dolente panorama das Artes Plásticas em Portugal!
Outro aspecto me ligou a Cruzeiro Seixas: é que, a determinado momento, decidiu, a convite de Tomás Ribas, delegado da Cultura do Algarve, abandonar a agitação da vida urbana e fixar-se tranquilamente, de 1984 a 1989, em Calçada, pacata povoação algarvia, do meu concelho, S. Brás de Alportel, para ali, usufruindo das delícias do Barrocal, dar livre curso ao seu espírito criador, na Arte e na escrita.
Ribeiro Teles, Cruzeiro Seixas - duas perdas, dois vazios a que pouco a pouco ainda virá a dar-se importância maior.

                            José d'Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 328, 2020-11-25, p. 6.

6 comentários:

  1. Duas enormes perdas. Que não percamos mais!

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  2. Um texto,umas palavras a não perder Cada vez a usamos mais, infelizmente !

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  3. Julia Franco
    26 de novembro às 23:38

    Tenho mesmo que levar,sim, Professor?
    Fiquei muito consternada com a partida do Arq.Ribeiro Teles.
    Quanto a Cruzeiro Seixas,aprecio a sua obra do desenho a escrita.
    Perdemos dois dos maiores vultos da nossa Cultura!
    Boa noite! Obrigada!

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  4. Parabéns por este lindíssimo texto. Não gosto de perca, que às vezes, nos restaurantes, querem fazer passar por cherne, mas ainda gosto menos de perdas, sobretudo de vidas humanas como as que são aqui referidas. Cada um à sua maneira, estes dois grandes vultos nacionais deixaram um vazio difícil de preencher. Menos mal que ambos obtiveram reconhecimento em vida. E valem-nos estes bons pedaços de prosa para o justificar.

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  5. Um texto cheio de humanidade, como é seu apanágio, e com o conteúdo do qual nos sentimos sempre gratificados. Obrigsdo, caro Professor.

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