sábado, 15 de janeiro de 2022

Pessoas não! – Recursos!


           
A palavra surge a cada momento: «as pessoas dizem», «as pessoas falam», «as pessoas não querem»… As pessoas, as pessoas, as pessoas
Mas, afinal, quem são as pessoas?
No contexto religioso, o termo poderá equivaler a «o próximo», bem patente na máxima «Ama o próximo como a ti mesmo». Parte-se do princípio de que todos somos membros da comunidade humana, ideia a reflectir, de resto, o proclamado por todas as religiões: a irmandade. Mesmo nas sociedades onde persiste a discriminação de género, de idade ou de raça, mesmo nessas, a ideia de pessoa acaba por prevalecer.
Chegados aqui, ocorrerá, porém, uma dúvida: se também será assim, nas sociedades ditas avançadas, cultas, civilizadas.
E aceito, por isso, o desafio de um amigo:
«Gostaria que abordasses um tema que me preocupa há muito e que, quase todos os dias, me perturba, quando, sistematicamente, nesta sociedade de mercado (não apenas ‘economia’ de mercado), vejo que tratam as pessoas como coisas», o que está patente em expressões como «recursos humanos» e «capital humano». Ou seja: recursos, coisas, objectos, valores…
«No nosso relacionamento com a Economia e com a Sociedade», continua o meu amigo, «temos apenas uma dimensão, mesmo que humana: consumidor, produtor, utente, cliente».
E conclui:
«Tornou-se de tal maneira moda que já ninguém fala em “pessoal”. Não é bonito! “Recursos Humanos” é… mais fino! O Ministério da Defesa, por exemplo, até deu um passo em frente: tinha uma Direcção de Pessoal, outra de Armamento e Material Militar. Agora, para reduzir as chefias, resolveu unificar tudo na Direcção de Recursos! Pessoas, alimentos, armas e outro material é tudo a mesma categoria. São todos apenas… Recursos!».
Por isso, mesmo a terminar a sua sugestão, exclamava, não sem um enorme desconsolo e a mais profunda tristeza, ele que comandou centenas de homens e tudo fez para os trazer sãos e salvos após as saídas:
– Hoje ainda faz mais sentido dizer que "os soldados são carne para canhão"!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 814, 15-01-2022, p. 12

2 comentários:

  1. Muito grata por este texto tão oportuno. Afinal as pessoas não devem ser metidas no depósito do material diverso, sem estatuto de relevo. Recursos Humanos, aceito, com designação bem demarcada ao lado dos outros recursos. É que os conceitos já se arrumaram na nossa cabeça ao longo de décadas e "pessoal" também soa a princípio do século. Sou logo remetida para os primeiros filmes dos Lumière, ou os de Aurélio Paz dos Reis: as saídas das fábricas.

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