sábado, 23 de abril de 2022

Um jantarinho de grão

             A partir de certa idade, é sabido, muito se vive de recordações. «No meu tempo…», diz-se, sem pensar que o nosso tempo é mesmo este que vivemos. Sucedem-se as mensagens em que se nos apresentam, por exemplo, diferenças de vida:
            – dantes, eram os pais que perguntavam ao filho, zangados: «Podemos saber porque é que tens esta nota tão má?»; hoje, pais ameaçadores, a pergunta é feita à professora;
           – dantes, liam-se os jornais e trocavam-se impressões; hoje, cada qual mergulha no seu telemóvel e… pronto!
            Se calhar, foi por isso que me apeteceu falar do nosso jantarinho de grão. Não que hoje não haja restaurantes por esse Algarve e no Alentejo onde a tradição se ressuscita e até é possível achar na ementa o diminutivo «jantarinho», tão ao nosso jeito; mas, na verdade, o ritual d’outrora seduzia-nos e ficou-nos bem gravado na memória. O sabor, claro, era puro, sem ingredientes estranhos; mas o ritual é que nos encantava mais.
            Para já, o grão era da nossa colheita. E ainda sinto aquela impressão, quando se iam apanhar as vagens já secas, parece que faziam comichão. Depois, a operação da descasca. Na véspera, iam os punhados de grão seco para o molho. Água com sal, se bem me lembro. E também bicarbonato de sódio, não era? Num grande alguidar de cortiça. No dia seguinte, com uma pequena placa de cortiça também, toca de mexer, mexer, põe-me energia nisso, para tirar a pele. Minha avó esmerava-se. Na panela ao lume de lenha, se juntaria o conduto, além de alguma batata e cotovelinhos: o toicinho entremeado que se fora buscar à salgadeira, o chouriço e a linguiça arreados do fumeiro…
           

Ao servir, imprescindível raminho de hortelã que se fora buscar à horta.
            Dieta mediterrânea a preceito, essa! – ponderaria a nossa patrícia Maria Manuel Valagão. E era.
            Regalávamo-nos!

                                                    José d’Encarnação 

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 305, 20-04-2022, p. 13.

 

5 comentários:

  1. Até aguça o apetite para o almoço! Um bem haja pela descrição.

    ResponderEliminar
  2. Já sei o que hei-de oferecer de almoço um sábado ou domingo destes. Estava a pensar numa ementa toda XPTO e, comestes cuidados todos, cá está ela,

    ResponderEliminar
  3. Vitor Barros
    Um ritual tão, tão conhecido....e antes ainda do jantarinho a minha mãe fazia as tais sopas de caldo do grão que eram também uma autêntica delícia!
    Abraço

    ResponderEliminar