domingo, 20 de novembro de 2022

Fezes sem mezinha!

            Apetecia-me pôr acento grave no e, contra todas as regras; mas não é preciso, que o z tudo esclarece. Quero, porém, que se distinga bem de ‘mesinha’, palavra que evoca aconchego, enquanto mezinha nos leva para o lado menos agradável da vida, ainda que envolto naquele manto suave das coisas meio ocultas, a sabedoria dos nossos antepassados, o recanto onde, um pouco às escondidas, a senhora de virtude esconjura os maus espíritos…
Atenho-me às fezes, salvo seja!
  Foto de Matic
Ó homem, nem queiras saber, o moço só me dá fezes! E fezes sem mezinha, essas, sem mezinha!
Estamos, pois, no sentido figurado da palavra, bem conotado, no entanto, com o que de menos agradável as fezes têm – e, por isso, sempre as queremos expulsar e preocupados ficamos quando começamos a sentir que as maganas não querem.
Surgiu-me a curiosidade: donde vem a palavra «fezes»? Donde vem a palavra «mezinha»?
Pasmei.
Deriva a primeira do latim ‘faex’, que tem o plural ‘faeces’. Ora, em latim, ‘faeces’ são as borras do vinho ou do azeite, o resíduo de qualquer coisa, o sarro do vinho, o depósito que fica no fundo da garrafa. O termo ‘fecal’ vem daí. Também pode ser (abrenúncio!...) uma pintura para a face!...
Fiquei esclarecido. E encantado também, por o povo saber, mesmo no seu dia-a-dia, sem estudos, usar imagens literárias prenhes de significado. Que piores ‘fezes’ pode haver senão… as verdadeiras? Daí que, amiúde, para elas, no linguajar quotidiano, a uma pessoa apeteça mandar a outra para lá!...
Vamos, então, à… mezinha!
E também pasmei, porque ‘mezinha’ vem do latim ‘medicina’. Ou seja (e os senhores médicos que se aguentem no balanço!), o medicamento por excelência! E há um pormenor não despiciendo: é que o significado primeiro de mezinha é… «líquido para clister»! Daí a sábia junção popular entre ‘fezes’ e ‘mezinha’ e a riqueza semântica (diriam os eruditos!) da frase «Aquilo são mesmo fezes sem mezinha»!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 311, 20-10-2022, p. 13.

 

7 comentários:

  1. Como sempre, gostei de ler este bocadinho de si. Foi uma mezinha para as fezes do dia a dia. Um beijinho. Julieta lima

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  2. Eis como saber latim poderia ser mais bem aproveitado, mas agora só se usa o linguajar electrónico/informático do americanismo! Abraço da Vanda ( Madeira)

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  3. Bem hajas, Vanda, por teres aproveitado para enaltecer a importância do latim para a cultura geral. Um abraço cá do continente!

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  4. Sabiamente conciso e claro, bem moldado, sem obstipação mental ou verborreia diarreica, comum nos nossos dias. Sabe bem ler, e reler, para melhor compreender e aprender. Obrigado Senhor Professor por mais esta sua subtil e humorada lição.

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  5. Gostei muito. "Crónica sábia", infelizmente pouco frequente na nossa comunicação social. Abraço do Antão

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  6. Fezes sem mezinhas ou com mezinhas.... Vamos diretos ao assunto. Vai às fezes... vai às mezinhas... soa a falso! Vai à merda soa a vernáculo.
    Lembro-me de uma minha amiga e conterrânea se repimpar a pronunciar a palavra "merda", dizendo que é sonora. E exemplificava, silabando: mer da; mer da.

    Um abraço

    José Azevedo

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