quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Uma hora de borla!

             E logo apareceu a imagem do Primeiro a anunciar, sorridente, que, esta noite, Portugueses, ofereço-lhes uma hora de borla! 
            Perante, de facto, tantas promessas com que o Orçamento de Estado para 2023 se albarda, muitas das quais não vão passar disso mesmo, de «promessas», esta, em possível noticiário, no lusco-fusco de sábado, 30, até poderia apanhar alguém desprevenido. Cedo reconheceria, porém, que se não tratava de dádiva nenhuma, porque a mesma mão que ora a dava, em 26 de Março, sem alvoroço, no-la roubaria sem tir-te nem guar-te!

            Talvez, no entanto, a gracinha não seja tão inocente assim, pois encarreira com milhentas outras que, mui serenamente, albardam também elas o nosso dia-a-dia.
            A tua seguradora, sempre que vais a uma consulta médica e usas o cartão, rapidamente te envia uma mensagem:
            – Já reparou que, ao usar o nosso cartão para a consulta, poupou 20 euros?
            A mensagem vem de endereço que não permite resposta. É o que lhes vale, porque apetecia retorquir-lhes:
            – E esses escassos 20 euros que ora poupei, os únicos que lhes gastei neste mês, que são em comparação com a mensalidade de 217,58 € que já lhes paguei? E é todos os meses que eu vou a consultas, é?
            Também os senhores do supermercado de que tens cartão, logo após cada compra não esquecem de te dizer: «Com o uso do cartão já poupou 2315,90 €». E, em cada compra, lá vão mais uns cêntimos para o cartão. Pois, para o cartão. A descontar na próxima conta. Assim como pescadinha de rabo na boca…
            E já que estamos em maré de compras, quão aliciante está a ser o 9! Não, isso não custa 5,00 €, custa 4,99 €! Não, esse molho de espinafres custa-lhe apenas 1,99 €! E um pão saloio fatiado de 850 g? 3,19 €! Nada de zeros! Nada de perniciosos arredondamentos, ná!
           Outro dia, numa entrevista rápida de noticiário televisivo, uma velhota não teve pejo em proclamar: «Isto ninguém dá nada a ninguém!». Mesmo quando dás um beijo, a tua expectativa é que venhas a receber outro; se não, da próxima vez, não dás, pronto!...
          E já os Romanos tinham a frase do ut des, «dou para que tu me dês!». Mesmo em relação aos deuses, imagine-se! – «Eu ofereceu-te isto, deusa, e agora o assunto fica do teu lado, ouviste?».

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 833, 15-11-2022, p. 12.

2 comentários:

  1. Obrigada pelo texto....e espero que não mo venhas cobrar. O meu obrigado para ti custa 00,00

    ResponderEliminar
  2. Vivemos em constante ficção, até nas promessas dos governos. Maquiavel já explicava que o bom príncipe tinha de saber boas manhas. E apetecia-me gritar com a senhora de mais idade: " ninguém (quase...) dá nada de graça a ninguém". Até na comunicação se espera bom retorno. Mas essa história dos preços também me encanita. Esqueceram a importância da descoberta do zero, que tanto pode ser nada, como ser tudo para quem nada tem?....É só mudar-lhe a posição. Mas os compradores não precisavam de ficção. Tome lá o cêntimo e que lhe faça bom proveito, digo muitas vezes. Mas já não vou dizer mais...junto todos os que tenho num frasquinho e levo para contarem e descontarem. Muito grata pelo texto. Tive que fazer refresh para o ver...

    ResponderEliminar