quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Eu já deixei

            

             
– «Estava tudo a correr tão bem!»…
A frase – queira-se ou não – mesmo que se não haja dado particular atenção à entoação de quem a proferiu, trazia pequena nódoa de dúvida: «Não há bem que sempre dure!». Aquele pensamento maldoso, que sub-repticiamente se nos inocula no espírito, sempre pronto a dar acordo de si – e nós, que nem sempre temos à mão o antídoto eficaz..
Escreveu-me a Gertrudes:
            «Eu já deixei de rir por não ser capaz e de chorar por terem secado os sacos lacrimais. Agora a minha saúde mental só se aguenta quando estou com os netos ou então oiço concertos no Mezzo!»
Compreende-se. Quase a completar a casa dos 70, dissabores a atropelarem, a cada passo, o movimento bom, é tristonho o seu olhar para as paisagens da vida.
Valem os netos, salpicos de algazarra, inocência, esperança, a beberem da avó, sequiosos, ensinamentos ao longo d’anos amadurecidos…
Vale a beleza da música, capaz de nos transportar para horizontes de sonho, apaziguar tristezas, suscitar doçuras…

Afinal, Gertrudes, vale mesmo a pena viver!

José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 882, 20-08-2025, p. 10.

 

 

 

1 comentário:

  1. Que texto mínimo, mas tão bonito!
    Vale mesmo a pena viver, sim.
    Na frase "não há bem que sempre dure", falta o "nem mal que nunca acabe".
    Eu podia ser a Gertrudes, porque a minha quinta-feira foi de arrasar, mas não acabou comigo. Lembro-me sempre da frase toda.
    Continuo a rir quando há motivo e chorar...pouco. Sou mais de espernear porque tenho direito à vida.
    Já fiz alguma coisa por muita gente, como muita gente mais e melhor fez por mim, por isso tenho de fazer pela vida...ainda! Para lhes agradecer e para me dar o aroma que faltou.
    E farei, enquanto puder.
    Um grande abraço.

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