domingo, 15 de março de 2015

Numa sedução de cor…

             Um odor a salgadiço. Ausência presente de peixes cativos em luzidio estrebuchar. Já não são de fibras naturais as malhas enegrecidas das redes; substituem-nas o plástico resistente, multicolor. Geometria de quadrados repetida, repetida, a tropeçar agora num baraço esfiampado e naquela bóia esférica, metálica, corroída pelo sal, a magoar-se na ferrugem de abandonada fateixa.
            Ancorados estarão, porventura, os barcos que de redes, bóia e âncora se serviram, Pelo aspecto, destes não mais se servirão. Pausa temporária ou abandono total, na triste espera de um fim definitivo? Recordam, claro – como os humanos em curva descendente… – andanças longas em águas tingidas pelas múltiplas cores que os raios de Sol lhes despertavam. As cores do plâncton, dos ruivos, pescadas, lustrosos carapaus, chicharros irisados…
            Ancorados, os barcos; ancorados, os homens que deles dependem. A sedução de uma serenidade almejada que se sabe ser fugidia – que nova maré se apresta já e vamos partir aos primeiros alvores do arrebol…
            Essa, a sedução do pescador; bem outra, afinal, a sedução que enfeitiça o Artista. Sente o odor salgadiço, vê a infinita repetição do reticulado – e vai por aí, numa homenagem aos homens do mar, a dar-lhes tons variegados e garridos, que para negruras já basta a ansiedade dos dias. Queremos um banho de cor! Queremos saltitar de alegria – como quem passa o rio em poldras e se delicia com a visão das pétalas abertas de nenúfares ao rés d’água!...
            Assim, Nélio Saltão!
           Aquando do primeiro caminhar sobre essas oscilantes poldras da Pintura, fixou-se na realidade concreta, qual Cézanne, inebriando-a de cor. Naturezas mortas, a convidarem ao repasto; aquele saxofonista, a pedir atento escutar; a mesa de jogo, a requerer meditação… Mas já nesta última o espírito geométrico e a fuga do real se esboçavam. «Ancorados» sublima essa fuga – e deixa-nos encantados na repetição sempre diversa, desigual como o são todas as aventuras pesqueiras.
            Também nós, sentindo-nos ancorados, achamos que o areal e o cais dos coloridos apetrechos a esmo constituem forte apelo a um sonho urgente. E é isso que o Artista quer!
                                                                    José d'Encarnação
 
Nota: Abertura do catálogo da exposição ANCORADOS, de Nélio Saltão, inaugurada a 13 de Março de 2015, numa das salas do Centro Cultural de Cascais. Insere-se no âmbito das comemorações dos 650 anos da elevação de Cascais a vila e tem como objectivo homenagear os pescadores. Apresentam-se fotos do autoria do artista a mostrar os apetrechos de pesca em que se inspirou e dois dos quadros ali expostos.
 
 

                                                                                 

1 comentário:

  1. De Joana Arez:
    Caro José,
    Se me permite... Amei o que li.
    Que... tão bom!
    Que tanta verdade. Que tamanho sentir. Que quanto saber. E, que imenso aprender nas suas palavras, a propósito da Obra de Nélio Saltão.
    Deixo-lhe um grande abraço e os meus parabéns (num meu obrigada) pelo, vosso, dom da Palavra.

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