segunda-feira, 6 de abril de 2015

Agora, os jacarés são outros!...

             Mais horripilantes, perigosos, insistentes. Perseguem por dentro, dia e noite, noite após noite, pesadelo! Vivido em acabrunhante silêncio e só de quando em vez gritado.
            Os Olhos do Jacaré é mais um desses lancinantes gritos, a chamar a atenção para uma realidade que importa consciencializar, a fim de, na medida do possível, a tornar menos dolorosa. O fantasma de uma guerra imposta, bem no sabemos – que não vale a pena dizer mais.
            Rogério Pires de Carvalho, de gata ao colo e olhar quase macambúzio na capa, conta-nos como é. Se em Alenterra (2010) nos fez mergulhar nas mágoas de campanhas na frente de combate, aqui as magias são outras, em olhar bem acutilante sobre quem estamos a ser depois disso, a tentar-nos safar-nos, como o homem dos escorpiões, que já foi vendedor de uma catrefada de coisas e, se calhar, um dia, até vai vender banha-da-cobra; a tentar sobreviver («ó meu furriel, então o que é que faço aqui com o coto, que esta porcaria nem para tocar-ao-bicho serve, só serve mesmo para fazer cornos aos outros quando afinal quem foi corneado pela sorte foi aqui o nove, foi ou não foi meu furriel?» – p. 83); a tentar recordar mas em catarse («quem é a besta do teu capitão, ó cabo?» – p. 47); a tentar gozar com superstições e esquemas; a sentir-se, afinal, monstro que a longa noite gerou («A metamoforse», p. 85-89).
            Contos, no geral, breves, cativantes, muito do nosso dia-a-dia. Avesso a teorias, eu, não sei filiar Rogério Pires de Carvalho em determinada corrente literária ou se copiou doutrem a sua moda de escrita. Nem me interessa, confesso. Sei que gosto, exactamente por isso, por ser «muito do nosso dia-a-dia», tu cá tu lá, sem pretensos rodriguinhos literários, ainda que – hemos de reconhecer! – há densa literatura ali.
            O fino e mui atento escalpelizar de vidas quase paradigmáticas já, todos conhecemos algo de parecido, onde um certo ‘realismo mágico’ acaba por ser uma forma de cada um de nós, em determinado momento, fugir da realidade e inventar uma outra, em que demos largas à imaginação. Facilmente nos metamorfoseamos!...
            O conto «O nove» pode constituir o exemplo de como se diz tanto em tão poucas páginas (p. 81-83), a linguagem oral ganha relevo e a pontuação, a pôr-se, só iria mesmo atrapalhar. Ora imagine-se o pobre do já referido moço a quem o deflagrar de uma mina apenas deixara dois dedos na mão e a ter que fazer a continência. Assim:
            « ó pá, meu furriel, o major veio de lá furioso, aos berros comigo, a insultar a minha mãezinha, a dizer que eu estava a gozar com a hierarquia, o major berrava pela PêÉme, um alvoroço em Santa Apolónia que só visto, e eu a gozar o pratinho por dentro, por fora sem desfazer a continência, só os dois dedinhos espetados junto à testa […]» (p. 82-83).

Cenas da guerra e do pós-guerra
            Rogério Carvalho retrata cenas da guerra, cenas do após-guerra, a vida na cidade, a vida no campo, tudo com um olhar certeiro, numa minúcia de pormenores que não escapam a quem passa pela vida sem dela desprezar um ápice e de tudo se dando conta:
            «Os panos-higiénicos estavam pendurados num estendal improvisado, uma corda de sisal unindo duas palmeiras, uns estreitos rectângulos de pano turco com duas tiras de nastro cosidas nas extremidades. Cheiravam a lixívia e as mulheres estendiam-nos às escondidas para evitarem as perguntas embaraçosas dos miúdos» (p. 115).
            E o retrato da vida na caserna em «Os dois Rogérios» (p. 53-56), onde uma frase martelada aparece num crescendo, como que impertinente refrão no final de cada parágrafo:
            «Que a hierarquia queria uma carne obediente»
            «A hierarquia queria que a carne fosse rija»
             «... para a hierarquia, a carne se queria ousada»
            «… nestas coisas dos sonhos, a hierarquia não sabia de que forma impregnavam as carnes»
            «Que a hierarquia queria uma carne afinada»
            «Que a hierarquia queria a carne temperada neste vaivém»
            «Tinha razão a hierarquia, que sabia não ser a carne toda igual»
            «Porque como as hierarquias tinham premeditado, a carne passara a ser dócil e servil».
            Quatro páginas, em que – está bem de ver-se!... – os vocábulos ‘hierarquia’ e ‘carne’ reflectem superiormente uma obsessão.
            Da biografia do autor vamos sabendo aqui e além, mormente no último conto «Página em branco», que traz, por exemplo, a referência ao Natal, «indigestão dos fritos e das hipocrisias»… Rogério escreve ‘ainda’ com caneta de tinta permanente, na mão direita, «sentado a uma velha mesa de mogno escuro com pernas torneadas e quatro gavetas de tamanhos diferentes emparelhadas duas a duas» (p. 121); foi, dos dois, o Rogério «de baixo»; e furriel miliciano enfermeiro…
            Os Olhos do Jacaré, edição da Sinapis, Janeiro de 2015, 126 páginas. ISBN 978-989-691-333-5.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 06-04-2015:

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