sexta-feira, 1 de maio de 2015

A reflectir sobre a guerra colonial

            «A gramática dos sistemas humanos num cenário de guerra, a banalidade do mal (conceito forjado a Anna Arendt), os paradoxos e as contradições humanas insinuam-se nesta obra, como tópicos para meta-análise, reclamando do leitor a construção de um pensamento próprio, matizado pelo seu olhar» - escreve Ana Umbelino, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Torres Vedras, no prefácio ao livro O Ar Cheirava a Pólvora, de Manuel Ponciano.
Declaro-me incapaz de fazer análises assim; mas aprecio deveras quem tão bem maneja a palavra.
Na dedicatória manuscrita que teve a gentileza de lavrar na página de rosto, formulou Manuel  Ponciano o voto de que «a liberdade seja uma marca dos nossos dias!». Na verdade, este seu livro de 261 páginas é – e vou exprimi-lo, perdoar-me-ão, em frases singelas – apelo à liberdade, tendo como pano de fundo o ambiente vivido em Portugal nos primeiros anos da década de 70, em plena «guerra colonial», onde liberdade não era, de facto, palavra permanente no vocabulário quotidiano.

A história de um mancebo
O ponto de partida? A experiência pessoal do autor que, se bem interpreto a frase da pág. 246, José Luís Peixoto o terá incitado a partilhar, qual «acto psicanalítico», para que não continuasse no sótão «encerrada a se5te chaves»: «faz-se a catarse emocional» (p. 177), também com o objectivo expresso de contribuir para que, doravante, «não mais se pronunciasse a célebre frase homo homini lupus», é ‘o homem lobo do homem’ (p. 172).
O enredo, o normal nesse tempo: saído de uma congregação religiosa, onde fizera os estudos, o mancebo vai para Mafra; aí se prepara para a guerra; tem grave acidente no decorrer de um exercício; é colocado como escriturário no RI 2 de Abrantes. Começa a pensar em organizar a vida, quando inesperadamente o mobilizam para Angola, em regime de substituição. Casamento aprazado é, porém, para se concretizar, apesar de tudo, antes de embarcar no Boeing 707 que o levará a Luanda, donde seguirá, num Nord-Atlas, para Santa Eulália, onde chefiará a secretaria de um Comando de Agrupamento.

Considerações acerca do desgoverno
Descreve Manuel Ponciano com alguma minúcia a vida em Mafra. A vida concreta e, sobretudo, a vida psíquica, os pensamentos que então o terão assaltado.
Esperar-se-ia – nomeadamente atendendo ao título – o relato da experiência militar africana, ainda que, como responsável por uma secretaria, Manuel Ponciano estivesse embrenhado mais em tarefas burocrático-administrativas que bélicas. Preferiu, no entanto, ou parece ter preferido anotar três ou quatro episódios para privilegiar a atmosfera emocional da presença da guerra no dia-a-dia dos Portugueses e da revolta latente prenunciadora do 25 de Abril, demorando-se em longas considerações acerca do desgoverno e da tirania e optando por verberar, pontualmente, as senhoras das altas patentes militares que (dizia-se!) viriam quinzenalmente a Lisboa à cabeleireira, a frase «um cavalo vale mais do que mil homens», os caixões que chegavam com pedras dentro em vez de corpos...
Perpassa, pois, pelo livro o clima de angústia perante uma guerra absurda, implacável ceifeira de vidas e de esperanças, em obediência a uma política cega. Uma evocação desagradada e, até, de incontida revolta. Uma visão quase apocalíptica, dir-se-ia, patente, por exemplo, nestas frases:
«Este povo voltou à estaca zero» (p. 183);
«Os terrenos estão secos, a lama desapareceu, mas os pedregulhos continuam a rolar por entre as silvas que se opõem à fertilização para que novo fruto brote e venha satisfazer as necessidades de quem luta por um simples prato de lentilhas» (p. 206).
            E, nesse aspecto, a obra revela-se mui significativa, ainda que o autor de certo modo reconheça que poderia ter sido mais sóbrio: na pág. 245, pede perdão ao leitor pela «maçada que teve Ao ler estas páginas» e, na pág. 249, dialoga mesmo com ele: «Caro leitor, só espero que não te tenha enfastiado».
Convirá referir, todavia, a opinião de Ana Umbelino, que escreve no final do prefácio:
«Longe de se reduzir a um mero exercício de catarse, consubstanciado numa narração espúria ou magoada de episódios longínquos, suspensos no tempo, longe de se afundar no patético, ou na desesperança, a presente obra abre um clarão para o futuro, corporizando um gesto de compromisso» (p. 7-8).

A falta de revisão, pecha dos nossos dias
Não posso concluir sem, mais uma vez, me insurgir contra uma pecha cada vez mais frequente: a falta de revisão, que não honra os autores nem os editores.
No exemplar que tenho, além de gralhas, de pontuação inadequada, de palavras amiúde repetidas (caso do advérbio ‘bem’, que é recorrente), de lapsos de concordância e de frases sem sentido, caso sejam analisadas à lupa (e um bom revisor o faria), há inclusive páginas com numeração trocada. De frases sem sentido (em meu entender, claro!), respigo só ipsis verbis duas passagens, para justificar a afirmação:
«Mas Mafra, como assistiria a estas desventuras? Como recebia todos estes militares aos quais gostaria de lhes dar um bom acolhimento?
Por agora, antes que um novo carro de quatro rodas, sem que olhasse para trás e cortasse com o fio da meada que a ligava a gerações desfeitas, viesse a retomar um reconhecimento dos seus antepassados, novo paradeiro militar se me oferecia» (p. 183-184).
«Chegando ao final é que havia algum final a esperar-me, não seria mais quem cadáver ambulante comandado por forças alheias à minha própria vontade» (p. 241).
Porventura, se me é permitido, esta última frase terá sido pensada assim:
«Chegando ao final, se é que havia algum final a esperar-me, não seria mais que um cadáver ambulante comandado por forças alheias à minha própria vontade.»
O Ar Cheirava a Pólvora foi publicado pela Chiado Editora (Novembro 2014), com o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras, cidade onde o autor reside. Teve apresentação pública, a 19 de Fevereiro de 2015, na Biblioteca Municipal. ISBN: 978-989-51-1679-9.

                                                  José d’Encarnação 
 

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