domingo, 19 de março de 2017

A vergonha que eu passei!...

             Preparei minuciosamente, como convinha, a apresentação daquele monumento epigráfico do Museu Nacional de Arqueologia. Era a «peça do mês» e há, normalmente, pessoas interessadas em saber um pouco mais do valor histórico da «peça», pois decerto não foi escolhida por mero acaso. Além disso, eu tinha de assumir, com competência, o papel de especialista na matéria. De resto, eu próprio sugerira a escolha, dada a singularidade do texto: datado do ano 44, dava conta do preito de menagem anual solenemente prestado pelos habitantes da cidade de Ammaia ao imperador Cláudio.
            Aconchegado era o recanto escolhido do museu, mesmo ao lado da pedra inscrita, cuja imagem, para melhor visibilidade, também se projectou num ecrã.
            Lá lhes fui dizendo que, sendo homenagem ao imperador, o nome do soberano era, na frase, o complemento indirecto e, por isso, estava em dativo, o caso latino correspondente. Depois, assinalava-se a data, como convém a cerimónias relevantes; assim, a menção de que tudo se passara quando o imperador estava no seu 4º poder tribunício constituía o complemento circunstancial de tempo e esse era o motivo para usarmos aí o ablativo.
            Enfim, a meu ver, uma explicação serena, para um grupo simpático de pessoas dotadas de suficiente cultura para compreenderem perfeitamente a mensagem a transmitir. E preparava-me para dar a sessão por terminada, quando um dedinho tímido se levantou e, perante as ajustadíssimas observações feitas, eu… corei de vergonha!
            ‒ É que, professor, já não há complementos circunstanciais, é tudo complemento oblíquo!
            Agradeci, pedi desculpa, reconheci a ignorância.
            De regresso a casa, jurei que iria actualizar-me. Quando, porém, busquei no computador o que poderia elucidar-me (lembrava-me vagamente dum tal TLEBS…), saltou-me o texto da recentemente premiada Teolinda Gersão, que pode encontrar-se pondo no google «Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa». Foi publicado no Público a 18/06/2012. Essa nova terminologia está prenhe de conceitos filosóficos, ao que parece – e eu apanhei 10 na prova escrita de Filosofia do 7º ano no Liceu Nacional de Bragança!... Portanto, com a bênção de Teolinda, vou continuar sacrílego: essa do complemento oblíquo não me entra na cabeça! Assim como os exemplos que Teolinda apresenta: «hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia». «Palavrões por palavrões, eu sei dos bons», conclui Teolinda, pondo a frase na boca de um dos netos. Esses, os bons, «ajudam a cuspir a raiva»; agora, o complemento oblíquo…

                                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 704, 15-03-2017, p. 11.

5 comentários:

  1. Julia Fernandes 19/3 às 13:59
    Ele há coisas...

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  2. Manuel Rei Vilar 19/3 às 14:20
    Obrigado, pela dica da Teolinda Gersão que li com grande agrado. Estou completamente de acordo com essa carta de amor à Lingua Portuguesa... cujo objectivo seria mandar todos esses palavrões, como diz a Teolinda, para a retrete. Não sei como é que as criancinhas podem aprender e podem usufruir da bela Lingua de Camões. E os pobres dos estrangeiros que nos procuram? Viva a simplicidade! Viva a pedagogia! Estes novos métodos não formam... deformam!

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  3. Francisco Ramalho Claré 19/3 às 15:53
    De oblíquo eu só conhecia o termo matemático.

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  4. De: Isabel Freire
    domingo, 19 de Março de 2017 23:08
    Agradeço-lhe o belo enquadramento de uma anedota à conta do não menos anedótico complemento oblíquo!
    Para alunos de dez anos o importante é, sem dúvida, a Leitura, a Compreensão Oral e Escrita e a Escrita! Questões de gramática são importantíssimas desde que entendidas para serem estudadas/memorizadas. Ora facilmente se entende que a noção de uma circunstância de lugar, de tempo e de modo, entre outras, são funções sintáticas de fácil interiorização pelas crianças desta faixa etária. Quanto ao oblíquo, dizem os que se consideram entendidos, que é muito mais fácil, uma vez que - e cito -"Tudo o que não se pode substituir pelos pronomes pessoais complemento direto, nem pelos pronomes pessoais complemento indireto, é complemento oblíquo". Mais tarde, deve ser um conteúdo dado com outra abordagem. É inacreditável a ligeireza como se alteraram conteúdos, sem a noção de como se trabalham nas aulas e a ineficácia na promoção do sucesso do Português.

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  5. Para ainda mais me baralhar acerca do complemento oblíquo e dessoutras mudanças de nomenclatura gramatical, achou por bem o meu colega e Amigo Victor Martins transcrever passagens, certamente colhidas num manual de agora. Confesso-me 'branco' e não entender patavina das explicações exaradas.
    A mensagem recebida reza assim:

    «Olá Zé. No meio da minha curiosidade li:

    ... O estatuto deste complemento dentro da gramática tradicional é pouco claro. Por um lado, abrange os complementos dependentes do verbo, que não podem ser retirados nem deslocados, como os complementos preposicionais (ou complementos diretos preposicionados), que na verdade são complementos obrigatórios do verbo:

    iv) Duvidava da sua existência.
    v) *Da sua existência duvidava.
    vi) *Duvidava.

    vii) Moro no Porto.
    viii) *No Porto moro.
    ix) *Moro.

    Por outro lado, inclui os complementos exteriores ao verbo, não dependentes, não obrigatórios (suprimíveis de deslocáveis), esses verdadeiramente circunstanciais:

    x) Às vezes vejo um filme policial.
    xi) Vejo um filme policial.
    xii) Vejo, às vezes, um filme policial.

    xiii) Encontrei-o (na sua casa de praia), (em Moledo).
    xiv) Encontrei-o.
    xv) Em Moledo, encontrei-o na sua casa de praia.

    A aparente indefinição e abrangência desta função sintática no quadro da gramática tradicional levou a uma atualização do seu estatuto teórico levada a cabo pela gramática generativa e pela gramática de valências.
    A gramática generativa redefiniu o complemento circunstancial atribuindo-lhe a designação de oblíquo, função sintática mais abrangente que se divide em argumentos obrigatórios do verbo (ou complementos) e argumentos facultativos do verbo (ou adjuntos). As frases iv) e vii) contêm exemplos de oblíquos que são complementos do verbo, ao passo que as frases x) e xiii) contêm sintagmas com função de oblíquo que são adjuntos do verbo.
    A gramática de valências especializou os complementos circunstanciais obrigatórios do verbo, designando-os por actantes. Consoante a especialidade semântica desses actantes, atribuiu-lhes um número. Os complementos circunstanciais que constituem argumentos obrigatórios, e por isso, não suprimíveis e não deslocáveis são, segundo este quadro teórico, os seguintes:

    Tipo de actante

    A4
    Designação: complemento preposicional
    Exemplo: Não gosto de bolo de cenoura.

    A5
    Designação: complemento locativo/situativo
    Exemplo: Eles vivem em Inglaterra.

    A6
    Designação: locativo direcional
    Exemplo: O João vai para Madrid.

    A7
    Designação: complemento temporativo
    Exemplo: Marcaram a reunião para terça-feira.

    A8
    Designação: complemento de medida, duração, preço
    Exemplos: O João mede um metro e oitenta. / O congresso durou uma semana. / Este livro custa cinquenta euros.

    A9
    Designação: complemento de modo
    Exemplos: Esta flor cheira bem. / Eles portaram-se mal.

    Quanto aos argumentos que são efetivamente facultativos, não dependentes do verbo, suprimíveis e deslocáveis, a gramática de valências optou por atribuir-lhes o estatuto de circunstantes, opondo-se aos actantes, verdadeiros complementos do verbo. São exemplos de circunstantes, os complementos circunstanciais contidos nos exemplos x) e xiii).

    Ora o teu artigo deu para analisar a "novidade"... Pois é. Vocês que são "brancos" que se entendam! ».

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