O
funcionário principiou a impaci entar-se.
‒
Então! Então! Por onde há-de ele entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam.
Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem lugar. Não vêem que estão
molestando este senhor?».
É
passagem por de mais conhecida d’A
Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis. A chegada do carteiro por que
todos ansiavam. «Hoje então, que chegam as cartas do Brasil, ninguém pára com
este povo» ‒ comentara Bento Pertunhas para Henrique ,
recém-chegado a Alvapenha. «Há, de facto, poucas cenas tão animadas como a da
chegada do correio e das distribuição
das cartas em uma terra pequena», comenta, mais adiante, Júlio Dinis, que não
hesitou em contar a cena da Joana Pedrosa, de Serzedo:
«‒
Aqui estou; será do meu António, senhor? disse uma velha, pobremente vestida.
‒ Será do seu António será ‒ respondeu o insensível funcionário ‒; o que lhe posso dizer é que traz obreia
preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras. Apanharam-lha; e ela, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.»
Não sei se ainda assim é; mas
lembro-me de que, um dia, ao ir ao Lar das Fisgas, havia um grupo de utentes à
porta. Compreendi depois: estava na hora de chegar a carrinha dos Correios. E
relembrei também, nessa altura, a cena d’A
Morgadinha, que, confesso, lida
quando eu ainda era adolescente, jamais esqueci.
E porque me recordei dela, agora?
Pelo
contraste que sinto – embora, como também já dizia Júlio Dinis, «nas grandes
cidades dispersam-se estas comoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada
um». Mas… passam-se! Que alegria temos hoje, ao receber uma carta manuscrita,
quando já nos habituámos à pressa atabalhoada do correio electrónico, que por
vezes nem «assunto» traz!... Que ternura sentimos por quem disponibilizou um
pouco mais do seu tempo a escrever-nos à mão? Até o abraço ou o beijinho aposto
no final sabem melhor que a estereotipia do «beijinhos!» que hoje se atira a
torto e a direito, amiúde sem se pensar bem no que o beijinho significa!...
Respondi
recentemente, por escrito, a um inquérito dos CTT; e, como sou cliente do
balcão da Pampilheira, marquei praticamente tudo com «excelente», porque é
verdade – e sou dos que vai aos correios praticamente todos os dias e todos os
dias recebo correspondência.
Aconteceram-me,
porém, quatro cenas que não resisto a contar, porque nada de bom – a meu ver –
já indiciam.
Primeira:
as queixas de gentes de Janes e Malveira, onde (disseram-me) a correspondência
se perde por caixas alheias.
Segunda:
o ter apanhado na minha caixa de correio, não apenas a correspondência para mim
mas também a de dois dos meus vizinhos (e não era a primeira vez).
Terceira:
o de ter enviado uma carta para a direcção
da revista do Arquivo Municipal de Loulé, que tem o curioso nome de Al’ulyã, e ela me ter sido devolvida por o destinatário ser
«desconhecido».
Quarta:
o de ter remetido, a 27 de Fevereiro, um embrulho para o Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, que me foi devolvido, a
7 de Março, porque o destinatário… «mudou-se»!
O destinatário... mudou-se! Mas sabe-se para onde se mudou! |
Explico
a 4ª, porque o Centro saiu dessas instalações há algum tempo, mas tem papel à
porta a dizer onde agora está.
Portanto,
no que se refere à 3ª e à 4ª cenas, das duas uma: ou há uma ordem superior para
que se proceda à devolução nessas
circunstâncias ou entrámos definitivamente na era do automatismo
despersonalizado, muito longe, por conseguinte, da cena d’A Morgadinha, e não existe aquele sentimento de que ali vai uma
mensagem pessoal, por que porventura alguém há muito espera e que vale a pena
tentar fazer chegar ao destino, evitando até mais despesas, tanto da empresa
como dos utentes.
Por
isso eu digo: senhores, carteiros-autómatos não, obrigado!
José d’Encarnação
Publicado
em Costa do Sol Jornal, nº 179,
22-03-2017, p. 6.
Ana Salgado 23/3 às 0:32
ResponderEliminarE também é Júlio Dinis que diz: «Nas grandes cidades dispersam-se estas comoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que têm segurado com mão trémula na correspondência, que o correio lhes traz; no ansiar do coração com que lhe rasgam o selo; nas lágrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura; no irresistível movimento de desespero, com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que as subscreve; lembrem-se disso, multipliquem depois esses factos, todos; despojem-nos das reservas que a etiqueta impõe às classes mais civilizadas; façam-nos manifestarem-se num mesmo momento e num mesmo lugar, e digam se concebem muitas outras cenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em luta travada.» Tudo se perde... ou tudo se transforma?
Ana Salgado 23/3 às 1:29
ResponderEliminarEu tenho um apreço especial pelo género epistolar. Ando a ler, curiosamente, as cartas de Júlio Dinis. Devorei, por exemplo, as de Camilo. Sempre que termino estas leituras, sinto uma certa nostalgia. Durante anos, cultivei o ritual das cartas manuscritas, sobretudo com um dos meus tios, uma senhora prima da minha mãe e com o meu irmão mais velho enquanto se doutorava em Gales. Cheguei a corresponder-me, por carta, com um amigo de Lisboa. Hoje ainda nos rimos com isso. Lembro-me de passar uma temporada em Gales e a alegria do dia era a de ouvir as cartas a cair no chão. Eu corria para as apanhar, e não eram contas para pagar ou publicidade, eram notícias da família e do namoradito. Eu devia ter nascido noutra época. Adoro tecnologia (e também gosto de alguns emails que recebo), mas sinto uma certa nostalgia de... outros tempos. E já pareço uma velhinha...
Jose Martins Colaço 23/3 às 10:37
ResponderEliminarJosé d'Encarnação, digo-te que um e-mail não transmite a saudade que uma carta transporta. Concordas?
Comentário meu: claro que concordo! Sente-se mais a pessoa que nos escreve a não a impessoalidade das teclas!
Boa Tarde
ResponderEliminarSempre que leio ou ouço estes queixumes pergunto, quando fui a última vez que escreveu a alguém?
Maria Helena
Essa, de facto, uma boa pergunta. Eu sei responder pela afirmativa; no entanto, acredito que muitos dos nossos amigos terão dificuldade em responder, mormente se estiverem a pensar em correspondência enviada por via postal.
EliminarRogerio Cardoso 27/3 às 9:51
ResponderEliminarOs próprios CTT estão a contribuir para o decréscimo das chamadas cartas, senão vejamos: antigamente, todos os dias havia o chamado carteiro, esperado pelo menos pelos mais velhos, a figura amiga que durante anos trazia as cartas, boas e más, mas era um momento de meia dúzia de palavras sempre interessantes. Presentemente, e depois de eu estranhar a ausência da entrega de correspondência durante alguns dias, perguntei o motivo e obtive a seguinte resposta: as cartas chamadas normais são entregues com intervalos de 2 e 3 dias, porque não existe pessoal, as cartas registadas, essas sim, são entregues rapidamente. Depois, os funcionários, os por nós chamados carteiros, mudam constantemente de local de trabalho, o que implica o não conhecimento dos destinatários, e a devolução das cartas, caso a morada não venha 100% correcta. É o que se passa presentemente e que deveria ser corrigido, para retomar a velha tradição do "Bom dia, senhor carteiro, tem alguma coisa para mim?"
O meu comentário: É exactamente isso que se passa, amigo Rogério. E contra isso deveríamos lutar! O correio é - deveria ser! - um serviço público! - J. d'E.
Ana Teresa 23/3 às 11:42
ResponderEliminarOlá, Professor! Estou inteiramente de acordo, e como eu ouço queixas no meu local de trabalho de pessoas que não recebem correspondência, dizendo-me os mais variados motivos. Eu penso o mesmo em relação à chamada telefónica trocada muitas vezes por SMS. Costumo dizer que quando verdadeiramente se quer transmitir algum recado ou felicitar por qualquer motivo alguém, se telefona e não se envia SMS. Beijinho verdadeiro, Professor!
Ana Teresa 28/3 às 13:59
ResponderEliminarPenso que os CTT foram privatizados, certo? Será essa a razão? Poder-se-ia fazer uma exposição que nós assinaríamos?
José d'Encarnação:
A privatização pode estar na origem da redução de custos e da consequente diminuição de carteiros, com as consequências de que atrás fala Rogério Cardoso. O meu texto poderá ser uma primeira exposição; vamos ver se há resposta e se o procedimento melhora; se continuar a piorar, sim, e sobretudo se começar a haver casos em que o atraso na entrega prejudica as pessoas por estarem ultrapassados os prazos pedidos, teremos de pensar numa atitude pública mais... 'drástica'.
Edgar Valdez 23/3 às 22:48
ResponderEliminarGosto de receber cartas e retribuí-las. Tenho um problema, pois continuo a escrever com a ortografia com que aprendi e ainda não consegui «assimilar» o novo acordo. Não sei se vou ser penalizado por isso. Os meus amigos que o digam após receberem as mensagens que lhes envio. Um abraço.
Comentário meu: Penalizado, por que carga d'água? Ainda estamos para ver se esse «acordo» vai avante...
João Francisco Alcaide 23/3 às 19:13
ResponderEliminarO ditado diz que enquanto o pai vai e vem, folgam as costas. Neste caso, enquanto a carta vai e vem, vendem-se mais uns selos... Cumprimentos.