quarta-feira, 19 de abril de 2017

Sentimentos desencontrados, na perturbação incontida


A propósito de Splendid’s pelo TEC
 
            Publicou a Editorial Verbo, em 1980, nº 34 da Colecção Boutique, o livro Obrigada, Simone!, de Sandra Marini, que tive o privilégio de traduzir do italiano.
            Terá sido como que pedrada no charco, pois relatou a serenidade com que Simone, uma educadora de infância, lograra manter sem pânico as crianças da escola onde se enclausurara um bandido armado, que recusava render-se às autoridades e ameaçava chacinar os reféns. Um assunto insuspeitável e, de certo modo, premonitório, se pensarmos que, de então para cá, cenas dessas acontecem, a vários níveis, com frequência. Sandra Marini analisou o trabalho da professora, a par e passo com as reacções psicológicas do assaltante, com que ela necessitava de constantemente ‘negociar’.
            Recordei-me desse enredo, em que semanas a fio me embrenhei, ao assistir agora à peça, de Jean Genet, Splendid’s (1948), em cena pelo Teatro Experimental de Cascais. Jean Genet (Paris, 1910-1986) tem, nos seus escritos, esse condão de pôr a nu atitudes e pensamentos chocantes para a mentalidade «estabelecida», dita «normal». Não admira, aliás, que assim seja, porque, filho de prostituta, viria a ser adoptado por uma família rural, no seio da qual não conseguiu manter-se, pelo que foi, jovem rebelde, atirado amiúde para reformatórios e prisões, que determinaram, de certo modo, a sua tendência homossexual, também essa uma forma de se rebelar contra o status quo.
            Assumiu, desde sempre, Carlos Avilez o carácter experimental da sua companhia e, por isso, Jean Genet constitui um dos seus autores preferidos (é a sexta produção que faz de uma obra sua). E não foi casual para os dias de hoje a escolha de um texto que mostra o lento desenrolar dos sentimentos e das atitudes de um grupo de sete ‘bandidos’ que mantêm como refém a filha de um milionário americano e, descobertos, se vêem forçados a entrincheirar-se no hotel Splendid’s, onde tudo se passa.
            Qual jornalista, Teresa Côrte-Real aparece, de vez em quando, a dar conta do que se passa lá fora; no entanto, ao espectador o que interessa mesmo é o que se passa ali dentro, num espaço limitado, onde as paredes são espelhos, para que – como nos lares da terceira idade – os personagens se vejam, mesmo sem o quererem, e assim se consciencializem melhor da sua figura e da situação em que se encontram. Nós estamos, de certo modo, do lado da jornalista, a pensar como é que tudo vai acabar; é ilusão, porém, porque não há parede do nosso lado, não há biombos, os bandidos estão mesmo ali, ao pé de nós, à mão de semear e corremos o risco de uma bala perdida nos vir bater na cabeça. Não comungamos dos sentimentos, temos de os repelir, porque, afinal, estamos de fora, mas com um pé lá dentro. Somos cúmplices, porque não saltamos da cadeira e desatamos aos tiros; mas somos pusilânimes, sabemos que isso de nada adiantaria e qualquer movimento equivaleria a ser cadáver.
            Não é, pois, fácil transmitir aos actores a densidade dramática que a cena impõe. Não é fácil para os actores demonstrarem esse turbilhão de ideias desencontradas que a todo o momento os assaltam, na certeza que têm de que, queiram ou não, o mais certo é estarem a viver ali os últimos momentos das suas vidas, pois a rendição proposta por um ou por outro equivaleria a morte certa, armados como estão e há, amiúde, o cano duma metralhadora quase metido na boca de alguém no jeito de «vou estoirar-te os miolos!». Trata-se, sem dúvida, de um desafio enorme, incomum, em que o actor tem de demonstrar que domina, na verdade, a arte de representar. Claro, chalaceia-se, ensaiam-se carícias a rondar o obsceno (nesses últimos instantes de vida, naquelas mentalidades, tudo poderá ser permitido…), tenta-se disfarçar o nervosismo… mas os espelhos lá estão a reflectir uma realidade nua e crua: a rendição ou a morte! E, no final, há morte e há rendição, porque nem todas as fidelidades são eternas e há as que são apenas aparentes, prontas a atanchar o venenoso ferrão na primeira boa oportunidade.
            Dir-se-á: vamos ao teatro para nele vermos reproduzidas as cenas com que os telejornais diariamente nos massacram? A resposta poderá estar na diferença, ou melhor, na indiferença: se o caso se passa ali à nossa frente porventura será mais fácil consciencializarmos os horrores cada vez mais frequentes neste dealbar do 2º milénio depois de Cristo!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 183, 19-04-2017, p. 6.
Fotos de Ricardo Rodrigues [retiradas, com a devida vénia, da página do TEC]

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