A propósito de Splendid’s pelo TEC
Publicou
a Editorial Verbo, em 1980, nº 34 da Colecção Boutique, o livro Obrigada, Simone!, de Sandra Marini, que
tive o privilégio de traduzir do italiano.
Terá
sido como que pedrada no charco, pois relatou a serenidade com que Simone, uma
educadora de infância, lograra manter sem pânico as crianças da escola onde se
enclausurara um bandido armado, que recusava render-se às autoridades e
ameaçava chacinar os reféns. Um assunto insuspeitável e, de certo modo,
premonitório, se pensarmos que, de então para cá, cenas dessas acontecem, a
vários níveis, com frequência. Sandra Marini analisou o trabalho da professora,
a par e passo com as reacções psicológicas do assaltante, com que ela
necessitava de constantemente ‘negociar’.
Recordei-me desse enredo, em que
semanas a fio me embrenhei, ao assistir agora à peça, de Jean Genet, Splendid’s (1948), em cena pelo Teatro Experimental de Cascais. Jean Genet (Paris,
1910-1986) tem, nos seus escritos, esse condão de pôr a nu atitudes e
pensamentos chocantes para a mentalidade «estabelecida», dita «normal». Não
admira, aliás, que assim seja, porque, filho de prostituta, viria a ser adoptado
por uma família rural, no seio da qual não conseguiu manter-se, pelo que foi,
jovem rebelde, atirado amiúde para reformatórios e prisões, que determinaram,
de certo modo, a sua tendência homossexual, também essa uma forma de se rebelar
contra o status quo.
Assumiu,
desde sempre, Carlos Avilez o carácter experimental da sua companhia e, por
isso, Jean Genet constitui um dos seus autores preferidos (é a sexta produção
que faz de uma obra sua). E não foi casual para os dias de hoje a escolha de um
texto que mostra o lento desenrolar dos sentimentos e das atitudes de um grupo
de sete ‘bandidos’ que mantêm como refém a filha de um milionário americano e,
descobertos, se vêem forçados a entrincheirar-se no hotel Splendid’s, onde tudo se passa.
Qual jornalista, Teresa Côrte-Real
aparece, de vez em quando, a dar conta do que se passa lá fora; no entanto, ao
espectador o que interessa mesmo é o que se passa ali dentro, num espaço
limitado, onde as paredes são espelhos, para que – como nos lares da terceira
idade – os personagens se vejam, mesmo sem o quererem, e assim se
consciencializem melhor da sua figura e da situação em que se encontram. Nós
estamos, de certo modo, do lado da jornalista, a pensar como é que tudo vai
acabar; é ilusão, porém, porque não há parede do nosso lado, não há biombos, os
bandidos estão mesmo ali, ao pé de nós, à mão de semear e corremos o risco de
uma bala perdida nos vir bater na cabeça. Não comungamos dos sentimentos, temos
de os repelir, porque, afinal, estamos de fora, mas com um pé lá dentro. Somos
cúmplices, porque não saltamos da cadeira e desatamos aos tiros; mas somos
pusilânimes, sabemos que isso de nada adiantaria e qualquer movimento
equivaleria a ser cadáver.
Não é, pois, fácil transmitir aos
actores a densidade dramática que a cena impõe. Não é fácil para os actores
demonstrarem esse turbilhão de ideias desencontradas que a todo o momento os
assaltam, na certeza que têm de que, queiram ou não, o mais certo é estarem a
viver ali os últimos momentos das suas vidas, pois a rendição proposta por um
ou por outro equivaleria a morte certa, armados como estão e há, amiúde, o cano
duma metralhadora quase metido na boca de alguém no jeito de «vou estoirar-te
os miolos!». Trata-se, sem dúvida, de um desafio enorme, incomum, em que o
actor tem de demonstrar que domina, na verdade, a arte de representar. Claro,
chalaceia-se, ensaiam-se carícias a rondar o obsceno (nesses últimos instantes
de vida, naquelas mentalidades, tudo poderá ser permitido…), tenta-se disfarçar
o nervosismo… mas os espelhos lá estão a reflectir uma realidade nua e crua: a
rendição ou a morte! E, no final, há morte e há rendição, porque nem todas as
fidelidades são eternas e há as que são apenas aparentes, prontas a atanchar o
venenoso ferrão na primeira boa oportunidade.
Dir-se-á: vamos ao teatro para nele
vermos reproduzidas as cenas com que os telejornais diariamente nos massacram?
A resposta poderá estar na diferença, ou melhor, na indiferença: se o caso se
passa ali à nossa frente porventura será mais fácil consciencializarmos os
horrores cada vez mais frequentes neste dealbar do 2º milénio depois de Cristo!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais],
nº 183, 19-04-2017, p. 6.
Fotos de Ricardo Rodrigues [retiradas, com a devida vénia, da página do TEC]
Fotos de Ricardo Rodrigues [retiradas, com a devida vénia, da página do TEC]
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