quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Há que pensar nos cães!...

            Nunca me pusera a questão; quando, porém, se fez a investigação para o livro Para uma História da Água no Concelho de Cascais (Guilherme Cardoso e José d’Encarnação, edição dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Cascais,1995), não hesitámos em dar relevo ao artigo que, em Julho de 1917, Ruy d’Athouguia Ferreira Pinto Basto, visconde de Atouguia, publicara no jornal A Nossa Terra acerca da caça em Cascais.

            É que, para a caça, há caçadores e… há cães! E, portanto, há que pensar seriamente neles. Por isso, o visconde traça um completíssimo quadro do que, em relação à água, se poderia encontrar no concelho:

            «Em quase todas as povoações», escreve, «há fontes junto às casas ou a pouca distância delas, sendo todas boas para beber; mas há grandes áreas de terreno onde as não há, sendo necessário levar água ou dar a volta por forma que não falte na ocasião necessária, tanto para nós como para os cães».

            E traça bem sugestivo quadro do que poderia encontrar-se. Por exemplo:

            «Na Marinha, desde a Guia até ao Cabo Raso, só há água no pinhal, onde passa em canos de chumbo, ou na fonte da Areia, que dista do povoado aproximadamente 1 km».

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            Comuniquei, há dias, à Cascais Ambiente a minha preocupação quanto à sobrevivência de um ouriço-cacheiro que vive no meu bairro. Fiquei descansado com a resposta obtida:

            «Os ouriços, entre outros pequenos mamíferos, têm a capacidade de se adaptar e conviver com o ser humano, sendo que, na maioria dos casos, não damos por isso. Neste caso em particular dos ouriços, estes pequenos mamíferos beneficiam dos nossos espaços verdes urbanos, onde conseguem capturar alimento como caracóis e lesmas, mais abundantes em zonas regadas.

            A espécie não é ameaçada e é um bom indicador de qualidade ambiental. O facto de se deixar ver é porque está à vontade e confiante de que não lhe fazem mal, na certeza de que este já identificou os riscos existentes no local.

            Recomenda-se assim que se deixem sempre estes animais nos seus locais onde sempre viveram e estão adaptados, conhecem os abrigos, pontos de água e alimento».

            Não pude deixar de relacionar este caso do ouriço com a história dos cães de caça, porque a preocupação era a mesma: a de haver água.

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            Preocupação bem antiga, essa, se pensarmos nos Romanos. No povoado dos Casais Velhos, entre a Areia e o Guincho, encontramos restos do aqueduto que o abastecia. O mesmo sucede na villa romana do Alto do Cidreira: identificámos complexo sistema de condutas de água. E, em relação à villa romana de Freiria, torna-se mais do que evidente que o sítio foi escolhido por Tito Curiácio Rufino, devido à existência de um permanente manancial de água cristalina a brotar da rocha. Aliás, não se esqueceu ele de mandar gravar agradecimento à divindade Triborunnis, o génio que protegia a nascente. E o amplo tanque das termas acabou por ser construído mesmo no leito do ribeiro, para todos se poderem banhar em… águas correntes!

            Relanceando o olhar por outras paragens, recordar-se-á que o Aqueduto da Águas Livres, erguido ao tempo de D. João V, aproveita no início do seu percurso o que fora o aqueduto romano de Lisboa, a partir da barragem romana de Belas, no vale da ribeira de Carenque. A cidade romana de Conimbriga teve aqueduto que abundantemente a abastecia a partir de Alcabideque (nascente ainda hoje em plena actividade); a capital da Lusitânia romana, Mérida, faz gala do seu Aqueduto de los Milagros, cuja água vem da barragem de Prosérpina, também ela de origem romana. Há, em Évora, o Aqueduto dito de Sertório, que igualmente teve raiz no tempo dos Romanos. Elvas orgulha-se do seu aqueduto da Amoreira e, em Coimbra, há os «Arcos do Jardim», que é o aqueduto de S. Sebastião.

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            Não é, por conseguinte, de admirar que, nas Memórias Paroquiais a que se referência na anterior crónica, a 23ª pergunta tenha sido: «Se há na terra, ou perto dela, alguma fonte ou lagoa célebre, e se as suas águas têm alguma especial virtude».

            Bem circunstanciada se revela a resposta dada pelo prior de Cascais, que começa por afirmar que «toda a terra é mui falta de fontes e de águas» (daí se compreender, voltando ao começo desta crónica, as preocupações do visconde da Atouguia, 150 anos mais tarde…).

            E explicita o reverendo Marçal da Silveira:

            «Tinha, sim, uma copiosa fonte, de que todo o povo bebia; porém, esta, por umas minas que lhe deram na mãe para que melhor brotasse, a deitaram a perder, com que veio a faltar: comummente se seca desde Julho até Novembro e torna, então, a rebentar. E é perda grande, porque a água é a mais célebre que se podia excogitar».

            Como sói dizer-se: quem tudo quer tudo perde!...

            «E em remédio», continua o prior, «tem vários poços e noras; porém, sempre se padece muito com esta grande falta».

            Havia, por conseguinte, que encontrar outros recursos e o rol pormenorizado não se faz esperar:

            «Remedeia a cisterna da Cidadela a uns; a fonte de S. Clara, a outros. E os mais se remedeiam com os poços ou a mandam buscar à Guia e ao forte da Guia, à Torrezela e a outras partes vizinhas, no que padecem mui grandes incómodos».

            Torrezela é a actual Atrozela, sita no vale da Ribeira da Penha Longa que, mais adiante, se junta à Ribeira de Porto Covo e, começando por ser Rio Marmeleiro, é depois a Ribeira das Vinhas, o maior curso de água do concelho de Cascais. Ainda hoje há na Atrozela uma captação de água. E não deixará de ser curioso lembrar que Atrozela está bem pertinho de Alcabideche, topónimo que equivale ao Alcabideque a que atrás se fez referência, fonte de abastecimento de Conímbriga. A etimologia é, na verdade, a mesma: da expressão latina «ad caput aquas», literalmente ‘à do manancial de águas». Há, na Sardenha, uma localidade que ainda mantém esse nome: Cabu d'Aquas ou Caput Aquas, justamente por estar próxima de uma nascente de água potável muito famosa e conhecida desde a época romana. Em Portugal, porventura por influência dos Árabes, deu Alcabideche e Alcabideque.

            Uma nota final, como recorda o Pe. Marçal da Silveira:

            «No convento dos Padres Carmelitas se descobriu de novo uma fonte de água que buscaram na cerca, com que se remedeiam, pois a que tinham, em uma nora antiga, era salobra; e da outra fazem caridade a muita vizinhança».

            Com o abastecimento desse convento – onde está hoje o Centro Cultural de Cascais – se relaciona o aqueduto de que pode observar-se um bom trecho no Parque Urbano da Ribeira dos Mochos.

                                                              José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 06-09-2020: https://duaslinhas.pt/2020/09/ha-que-pensar-nos-caes/

 

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