terça-feira, 8 de setembro de 2020

Não temos Festas do Mar!

             Evocávamos, a propósito dos toques das sirenes e do ronco cavo do Farol da Roca, os perigos a que os mareantes estão sujeitos. O súbito eclodir duma trovoada, ondulação traiçoeira e inesperada, vendaval forte que se levanta… E o pescador eleva as mãos ao Céu! Conta, sim, com os homens, com os seus camaradas de companha, todos por um e um por todos; mas conta também com os santos de sua devoção.

            Não foi, decerto, por acaso que Gregos e Romanos viram no Oceano uma divindade: Poseidon para os primeiros, Neptuno para os segundos. Ambos servidos por uma escolta de mui suaves ninfas, capazes de acarinhar no seu seio o mareante mais desconsolado e receoso. Tinha uma centelha divina essa vastidão de água sempre em movimento, doutra forma não podia ser!

            Proverbial, pois, a devoção dos pescadores.

            Significativo exemplo será a tábua de milagre que se mostra no Museu do Mar D. Carlos I, em Cascais. Chama-se «tábua de milagre» a uma ingénua gravura pintada em madeira, que conta o milagre feito por um ente sobrenatural, numa circunstância trágica cuja narração figura como legenda. A do Museu do Mar reza assim:

ANO DE 1683

Nossa Senhora dos NAVEGANTES ≈ EX-VOTO ≈ DE SIMÕES FARIA

POR SE TER SALVO DE GRANDE TORMENTA ÁS VISTAS DE CASCAES E

COM HOMENS A SALVO. PROSTADO AGRADEÇE Nossa S.dos NAVEGANTES. P.N.A.M. 

            Lá está a Senhora, coroada e aureolada, seu manto protector, na mão esquerda uma caravela e, na direita, a fateixa da esperança e da salvação. O barco, uma nau, que seria, na altura, o símbolo corrente de uma embarcação a que se quer bem e não, decerto, o barco capitaneado pelo pescador Simões Faria.

            Há, na vila cascalense, uma igreja da invocação da Senhora dos Navegantes e uma ermida, votada a Nossa Senhora do Porto Seguro, a que também se dedicaram ex-votos. Recordar-se-á ainda que pertenceu à irmandade dos pescadores a oferta dos notáveis painéis de azulejo azul com cenas das Sagradas Escrituras, que cobrem três das paredes da sacristia da igreja matriz, conforme legenda por sobre a porta que dá para a sala do despacho: ESTA OBRA MANDARAM FAZER À SVA CVSTA OS IRMÃOS PESCADORES NA ERA DE 1720.

            Havia em Cascais duas paróquias: a da Ressurreição e a da Assunção. A matriz da Ressurreição, sita onde hoje está o Largo da Estação, sucumbiu com o terramoto de 1755. Houve intenção de a reedificar, mas a concretização falhou, por falta de apoios. Existe, porém, no Museu do Carmo, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, em Lisboa, uma lápide onde foi gravada uma frase em verso que celebra «o zelo e a devoção», o gosto e o «primor cortês» com que os «marítimos praticantes» cascalenses lograram fazer ‘ressuscitar’ o templo que era da Ressurreição. E assim termina a décima:

«Nos templos de Deus maiores / Foram pedra os pescadores / Colunas os navegantes».

            Poderia entender-se que os pescadores haviam contribuído com a pedra e os armadores com as colunas; não passa, porém, de figura poética, a realçar a importância que todos os marítimos tinham nestas obras da religião.

A devoção havia, pois, que publicamente se manifestar. E as Festas do Mar – este ano suspensas devido à pandemia – vêm ao encontro dessa necessidade; eco, sem dúvida, de outra romaria mais antiga, ligada à Senhora da Guia, que se realizou até aos anos 50.

Conta-se que, no século XVI, por ocasião de uma peste, em Lisboa, os vereadores da cidade fizeram a promessa: que, se a Senhora da Guia da peste os livrasse, viriam até ao local onde a Senhora aparecera, para a venerar e lhe trazer oferendas. Assim foi. Todos os anos, primeiro a pé e depois em barcos, ali vinham, em festa, cumprir o prometido.

Em 1965, o capitão-tenente António Cardoso, de mui saudosa memória, promoveu a Festa dos Pescadores: no ano seguinte, foi Festa do Mar, juntando-se à iniciativa da Capitania a Câmara Municipal, a Junta de Turismo e a Casa dos Pescadores. Em 1968, coube ao jornal «A Nossa Terra» a promoção da Festa do Pescador, em Setembro, que viria a repetir em Julho de 1970. Retomar-se-á essa tradição apenas a 5 de Julho de 1992, com as características que hoje assumiu – qual festa principal da vila, como a dos Tabuleiros em Tomar, a Feira da Serra em S. Brás de Alportel, a da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, a Feira de S. Mateus em Viseu…

É momento maior a procissão, no último dia dos festejos.

Nela se incorporam todos os andores da vila, aos ombros de personalidades da terra. O ponto alto: o trecho passado no mar. Os andores embarcam na Praia dos Pescadores em traineiras enfeitadas, pescadores e peixeiras envergam seus trajes típicos, e eles aí vão, serenos, em direcção à Guia. Diante do farol e da capela lançam mui devotos ramos de flores ao mar – em demanda de protecção para as fainas piscatórias anuais e em recordação, também, da festa antiga. E regressam. Desembarcados, os santos são, novamente, devolvidos, em procissão, aos respectivos lugares nos templos da vila, onde, ao longo do ano, aguardarão, pacientes, que os fiéis os voltem a invocar!

                                               José d’Encarnação

Publicado, a 20-08-2020 em Duas Linhas: https://duaslinhas.pt/2020/08/nao-temos-festas-do-mar/

 

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