terça-feira, 8 de setembro de 2020

Os padres é que sabiam!

              Já não se nota tanto, mas sempre houve a tendência, nos estudos históricos, de seguir o que o filósofo Hegel (1770-1831) defendera: a um período de análise segue-se o de síntese, o qual, por seu turno, gera novas e mais fecundas análises.

            Recorde-se, por exemplo, que, no caso da história de Portugal, Oliveira Marques ousou fazer essa síntese: História de Portugal desde os tempos mais antigos até ao governo do Sr. Marcelo CaetanoManual para uso de estudantes e outros curiosos por assuntos do passado pátrio, 2 volumes, Edições Agora, Lisboa, 1972. Foi o sucesso que se conhece, inclusive devido à inexistência, então, de manuais de síntese e de manifesta intenção didáctico-pedagógica. Na verdade, possuo também a 12ª edição, que teve (pasme-se!) uma tiragem de 10 000 exemplares, de Palas Editores, uma versão já «até à presidência do Sr. General Eanes».

            Seguiu-se-lhe o monumental Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, publicado entre 1963 e 1971, aqui já com a intervenção de especialistas nos vários períodos e temas. Esse esquema voltaria a ser usado, na década de 90, na Nova História de Portugal, da Editorial Presença, também dirigido por Joel Serrão; nos 8 volumes da Editorial Estampa (a partir de 1993), sob direcção de José Mattoso; e nos 15 volumes da História de Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos dias, do Ediclube (1998), dirigidos por João Medina. Ou seja, nestes escassos vinte anos, cinco largas sínteses, o que constitui prova de quanto se investigou logo a seguir aos primeiros anos da liberdade no nosso País!

            O testemunho mais representativo, a nível ocidental, dessa alternância análise / síntese foi, todavia, a Enciclopédia ou Dicionário Racional das Ciências, Artes e Profissões, obra publicada em França no século XVIII, por iniciativa de d’Alembert e Diderot, vasto empreendimento em 35 volumes, a que não foi alheio o terramoto de 1755. E compreende-se porquê: num período em que se preconizava o uso da Razão, de preferência às interpretações de teor religioso herdadas da Idade Média, o facto de – de um momento para o outro – quase no coração do Ocidente, inesperado e gigantesco cataclismo ter destruído uma cidade e, com ela, todo um manancial de memórias acumuladas ao longo de séculos, levou os intelectuais e os governos a porem a mão na consciência: há que salvaguardar a nossa memória!

            Bem apoiado pelos seus conselheiros e eivado, também ele, das ideias iluministas («devemos ser guiados pela luz da Razão»!...), o Marquês de Pombal enviou a todos os bispos, em 1758, um questionário sobre três questões principais a nível local: as povoações (27 perguntas), as serras (13 perguntas) e os rios (20). Subjaz, portanto, a este inquérito uma preocupação de índole histórica (centrada nas povoações) e outra de teor geográfico: as serras e os rios. Em suma, um retrato total do País! De resto, para que nada faltasse, havia, em todos os pontos, a recomendação final de que era importante acrescentar «qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório». As respostas deveriam ser enviadas à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino e caberia ao Padre Luís Cardoso a compilação dos resultados obtidos.

            Questionário enviado aos bispos porquê? – perguntar-se-á. Primeiro, por continuarem a ser autoridade respeitada; depois, porque eles o remeteriam aos seus párocos. E, na verdade, os padres é que sabiam! Eles é que estavam mais em contacto directo com a população, conheciam a palmo o território que lhes fora entregue, haviam estudado e até teriam documentação complementar no seu cartório paroquial.

            E foi assim que surgiram as chamadas Memórias Paroquiais, recolha ímpar do que se sabia até então acerca de cada uma das 4073 freguesias existentes!

            E logo o nome é significativo: memórias! Não se privilegiavam os documentos, que não muitos existiriam sobre o que se pretendia saber: que conventos, hospitais, templos, tradições religiosas, feiras, coisas antigas, personalidades notáveis, que estragos o terramoto provocara… Preferia-se o contacto com testemunhos vivos (Ai, os anciãos, aquela ‘biblioteca’ que tem de ser sempre bem aproveitada!...). E os párocos constituíam, não há dúvida, o veículo mais adequado, fiel e de confiança, para se chegar à fala com todos e se atingirem, assim, esses conhecimentos.

            Em relação ao território cascalense, temos as mui circunstanciadas respostas dadas pelo reitor da igreja matriz de Cascais, Padre Manuel Marçal da Silveira, datadas de 6 de Abril de 1758, depois de se haver informado, como explicita logo no início, «com as pessoas mais nobres, cientes e peritas desta minha freguesia de Nossa Senhora da Assunção, matriz desta antiga vila de Cascais».

            Já o cura da igreja da Ressurreição – a outra paróquia da vila – é muito menos explícito e sucinto que Marçal da Silveira e explica porquê:

            «Estas são as notícias que pude alcançar, conforme as informações que me deram, porque não sou desta terra e há poucos anos assisto nela».

            Transcreve Ferreira de Andrade, no seu Cascais Vila da Corte (p. XXVII-XXX), uma outra «sugestão» de resposta ao questionário por parte da freguesia da Ressurreição, subscrita pelo pároco Leandro dos Santos e Gusmão, que declara, no final, ter recorrido a «pessoas antigas» e a «notícias e individuações que me deram e eu tenho visto». Curioso, o termo ‘individuações’, que significa narrativas minuciosas.

            A freguesia da Ressurreição abrangia também o Estoril e, por isso, temos apenas mais três respostas ao questionário do Marquês:

            – A do cura António Coelho de Avelar, da freguesia de Nª Srª dos Remédios, Carcavelos, verdadeiramente sucinta, como que para despachar, tantos são os itens em que declara «não tenho que dizer». Veja-se, para exemplificar, a resposta à questão dos danos: «Padeceu bastante ruína no terramoto de 1755; porém, vão-se reparando»!

 

            – A do cura Joaquim Coelho da Silva, de S. Domingos de Rana, datada de 8 de Abril de 1758, que também dá a impressão de ter sido feita só por fazer, sem parágrafos. Em três penadas, a resposta ao quesito 15: «Os frutos desta terra e desta freguesia são vinhos e pão de pragana, os maiores lucros deste povo procedem da abundância de pedra de cantaria».

            – O cura de Alcabideche, Fortunato Lopes de Oliveira, também deixou itens por responder e estendeu-se mais na enumeração dos lugares e seus fogos.

            Afinal, nem tudo eles sabiam – ou preferiram não dizer!

            Contudo, quiçá não seja inoportuna uma pergunta, que tem a ver com aquele provérbio «casa roubada, trancas à porta»: o terramoto trouxe destruição em grande, muita gente morreu e o Marquês decidiu pôr trancas, para salvaguardar as memórias ainda vivas; o covid está a fazer os estragos que se conhecem – a que trancas vamos lançar mão?

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas de 2020-08-30: https://duaslinhas.pt/2020/08/os-padres-e-que-sabiam/

 

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