sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A mística sedução da orla marítima

            – Quando saíres daqui, qual é a primeira coisa que vais fazer?
            – Amigo, eu quero ir ver o mar! – respondeu prontamente o recluso.
            E não admira – que nós próprios, os que temos o privilégio de viver diariamente perto dele, esboçamos largo sorriso no momento em que, regressados da viagem de alguns dias, o voltamos a contemplar.
            Não foi acaso ser de Cascais ao Guincho a primeira pista ciclável aqui lançada e a sempre enigmática Boca do Inferno pode compendiar em si toda essa mística sedução da orla, que fascinou Fernando Pessoa e Aleister Crowley.
            Há um génio ali, encantador. Já aos Romanos encantara, nesta íntima fusão do mar, das dunas e da serra. Sim, a orla vive da serra e a serra vive da orla, ao sentirmos, como Camões, que «ali a terra se acaba e o mar começa». Do outro lado, frente à Praia das Maçãs, se ergueu, afinal, em tempo desses romanos, templo ao Sol e à Lua, fascinados decerto pela suave dolência dos poentes.
            Alexandre Jorge, aqui nado e criado, alma de artista, não poderia, pois, deixar de passar para os seus desenhos e aguarelas tal beleza singular. Fá-lo na suavidade azul das suas aguarelas a cativar instantâneos; mostra-o na eloquente sobriedade dos seus desenhos.
Apetece contemplar ao vivo o mar irrequieto, a placidez da serra e a irrequietude da rala vegetação dunar; mas Alexandre Jorge acaba por nos prender também e, com ele, ali ficamos, quedos, como que acariciados pela brisa, quando não fustigados pelo vento forte, também ele portador de mensagem singular.
Instantes captados, eternizados instantes a saborear o pormenor das dunas, a Peninha lá no cimo, o rochedo agreste aqui, o Cabo da Roca ao fundo, este pinheiro quase nu, aquele solitário veleiro na linha do horizonte... É a paisagem a assumir função dominante, a impor-se ao nosso olhar, a reter-nos – porque, no frenesim quotidiano, assim carecemos de parar, a observar pormenores que o Artista viu e a nós passaram despercebidos.
Uma viagem , bem localizada sim; mas eficiente trampolim para uma outra viagem, , no inconsciente, ao necessário encontro connosco mesmos.

            Cascais, 16 de Dezembro  de 2021

                                               José d'Encarnação

    Abertura do catálogo da exposição de Alexandre Jorge, realizada de Dezembro de 2021 a 20 de Janeiro de 2022, no Forte dos Oitavos. Foi colocado num painel, no final da exposição. Publicado também em Duas Linhas, a 15-12-2021 https://duaslinhas.pt/2021/12/a-mistica-seducao-da-orla-maritima/ .




1 comentário:

  1. Um texto tão bonito como a paisagem que descreve e, como o autor mesmo refere, alimenta a veia criativa do pintor referido. Mais uma exposição que talvez ainda tenha oportunidade de ver, se outras urgências não se impuserem... Gostei desta introdução do Historiador e Arqueólogo a evocar a presença romana, a captura de espaços de características únicas de solo e subsolo. E de paisagem, como esta em que mar e terra se abraçam com a permissão das dunas. Muito grata por mais este pedaço de bela prosa.

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