sexta-feira, 6 de maio de 2022

Viver (n)um Centro de dia

         Vão de propósito as duas hipóteses de título para as palavras de abertura a esta colectânea de versos. David Inácio vive no Centro de Dia da AISI (Associação dos Idosos de Santa Iria), em Murches, freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, desde que enviuvou e passou a estar sozinho, mas vive esse Centro. Ou seja, não é elemento passivo, que por ali está sentado entre refeições, olhando vagamente o vazio: integra, ao invés, a comunidade que durante o dia o acolhe
Esse, sem dúvida, o primeiro aspecto a realçar.
Natural de S. Brás de Alportel, em pleno Barrocal algarvio, David Inácio herdou desses ares entre a Serra e o Mar a facilidade de versejar. E recordamos necessariamente António Aleixo, sabendo de antemão que esse foi um dos muitos que por esse Barrocal medram e versejam, na alegria de viver, na vontade magana de nunca deixar perder oportunidade.  Tudo serve ao barrocalenses para lhes sair uma quadra – e David Inácio não é excepção.
Confessa que foi na AISI que ele próprio descobriu essa veia. Já a teria, aposto eu; só que não lhe fora dado azo para que se manifestasse. A vida decorrer-lhe-ia monótona: casa – pedreira; pedreira – casa; um copito na taberna, dois dedos de conversa além – e nunca o estro se revelara, até porque, decerto, o ambiente não seria o mais propício. Foi-o a AISI, mormente porque, tendo enviuvado cedo, o novo meio lhe despertou de imediato o lirismo que os anos de labuta diária por entre macetas, escopros e ponteiros, lhe não haviam permitido alimentar. Aqui, sim.
Nunca será de mais evocar o papel dos jograis medievos, vozes que se faziam eco de vidas, anseios, alegrias e dissabores. Como aqui, em toda a simplicidade de quadras de pé quebrado. Não teve David Inácio a instrução bastante para saber de sílabas, de ortografias, de rimas toantes ou soantes, de imagens de estilo ou versáteis onomatopeias… Nada disso! Tudo nele é espontâneo e se, na edição, quisemos agora mostrar – na ilustração da capa, que é de sua autoria – o que nos entregou, primeiro à Dra. Ana Raquel Silva e depois a mim, e como no-lo entregou, foi justamente para o mostrar na sua bem genuína autenticidade. Limitou-se a Dra. Raquel a ortografar e eu próprio ousei propor, aqui e além, a palavra que melhor quadraria ao acento ou à medida e não bulia com o cantar desse ritmo. Omitiu-se a raríssima pontuação que vinha nos originais manuscritos: abandonámo-la todinha para que o leitor a descobrisse. Propôs-se apenas uma sequência cronológica, porque sabemos quanto a Poesia – e esta de um modo muito especial – vive do dia-a-dia, do Carnaval, da Páscoa, das visitas, dos almoços de festa, do Natal… Todos sabemos quanto a epidemia e, agora, a guerra profundamente interferiram no nosso viver. E no dos Poetas ainda mais!...
«Órfão de letras» lhe poderíamos chamar; rico, porém, na forma simples como nos transmite o que lhe vai na alma. Sentimentos de ternura. Muitos, esparramados quase por todas as quadras. Sentimentos do membro duma comunidade que intensamente vive como sua. Por isso, não perde um aniversário para, com esse pretexto, propor mais abraços e beijinhos.
  Curioso, não há dúvida, este pormenor do abraço e do beijinho. Para David Inácio, não foi preciso vir a epidemia – que ele bem sente, aliás («Tive um sonho arrepiado / Um sonho não verdadeiro / Sonhei que estava infetado / Com o vírus traiçoeiro») – para lhe mostrar a forte importância que ambas essas manifestações de carinho têm no relacionamento humano. Pululam abraços e beijinhos pelas páginas do seu livro. Ousa, por vezes, ir um pouco mais além, na insinuação de algo mais íntimo: «Dá-me água por favor / Mas que seja bem fresquinha / Para eu matar o calor / Que tenho nesta boquinha»; ou mesmo engenhoso convite a uma vida em comum que se lhe antoja venturosa: «Recebe de mim um beijo / Ó minha querida fofinha / Eu sinto um grande desejo / Que um dia sejas minha».
Nunca esmoreceram, porém, as saudades da sua Aurora: «Éramos felizes verdade / Caminhávamos lado a lado / Partiste veio a saudade / Recordo o tempo passado». E mesmo os carinhos que recebe e as «princesas» que o rodeiam nem sempre lhe conseguem sublimar ausências, consolar tristezas, ainda que o tente esconder: «Digo sou triste por fora / Mas sou alegre por dentro». E não resistiu, apesar disso, mau grado essa quiçá aparente alegria interior, a desabafar assim em despedida: «Já estou a bater no fundo / Como se costuma dizer / Irei para o outro mundo / Já estou farto de sofrer». Ainda que, de facto, seja o versejar um dos seus maiores arrimos: «Os poemas vou escrevendo / Porque escrever faz-me bem».
Cumpre-me, pois, terminar como comecei: temos aqui um testemunho de vida. «A Árvore da Vida» foi, de resto, o título que o autor escreveu e quis ilustrar. Deu folhas, flores e frutos a sua árvore ditosa. 90 anos volvidos sobre o seu nascimento em S. Brás de Alportel, David Inácio dá testemunho. Os que – com ele – quisemos mostrá-lo neste livro estamos felizes por tal, assim, na simplicidade maior, no-lo ter proporcionado.

            Cascais, Páscoa de 2022

                                                           José d'Encarnação
                                                                       Associação Cultural de Cascais

Prefácio ao livro A Árvore da Vida, de David Inácio, Cascais, 2022, p. 3-6.

APRESENTAÇÃO (p. 85):

David Inácio nasceu, a 29 de Abril de 1932, em S. Brás de Alportel, no Barrocal algarvio.
Na década de 50, veio – com muitos outros, canteiros, cabouqueiros, trabalhadores… – para as pedreiras de Cascais. Descobrira-se a importância do azulino cascalense para as grandes obras públicas de então e, por outro lado, o chão são-brasense não se oferecia tão dadivoso quanto os subúrbios da capital…
Nunca o abandonou, decerto, esse hábito barrocalense do rimar quotidiano, a pretexto de tudo e de nada, mormente – como os demais – perante o azougue feminino.
A Árvore da Vida constitui, pois, em despretensiosa singeleza, o seu tributo à alegria de viver!

                                                           José d’Encarnação

1 comentário:

  1. Os afectos têm uma força tremenda. E se os reais não chegam, os ficcionais e as memórias aí estão, para os suprir. Gostei muito da ternura desta crónica e do cuidado colocado na produção poética de um senhor que vive numa Associação de Idosos, embora se perceba a sua juventude às vezes irreverente. Helena

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